Crítica
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Sinopse
Um burocrata solitário é assolado diariamente por pesadelos em que está se afogando. Tentando encontrar uma solução, ele busca ajuda numa técnica experimental que consiste em substituir os sonhos maus por lembranças boas.
Crítica
Em Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças (2004), amantes entristecidos pela separação recorrem a um método revolucionário capaz de deletar memórias indesejadas. Portanto, o dado de ficção científica está a serviço do romance na obra-prima dirigida por Michel Gondry. Seus personagens poderiam eliminar qualquer lembrança ruim, mas se atêm ao apagamento do amor passado a fim de vencer o sofrimento. No longa-metragem russo Dreamover, Dmitriy (Ilya Chepyrev) está em busca da solução para as noites abreviadas pelos pesadelos de estar se afogando. Seguindo um cartão colado na parte interna do metrô, ele chega a um rapaz que explica como uma invenção inovadora poderá ajudá-lo a combater esse problema que o incomoda diariamente. A máquina em questão substitui a projeção dos pesadelos por recordações amorosas – e esse personagem explica bem direitinho toda a lógica envolvendo ondas cerebrais de considerável intensidade e o porquê de o amor ser o caminho indicado ao tratamento. Portanto, de acordo com essa técnica, o usuário remonta ao passado de felicidade para fugir das armadilhas mentais que projetam coisas potencialmente nocivas. Dmitriy está batendo na porta da terceira idade e tem uma rotina típica de burocrata: repetitiva e bastante maçante. Como no filme de Gondry, aqui o romance se torna o principal elemento do discurso.
Já na primeira sessão mediada por um aparelho que parece um simples roteador de internet, Dmitriy revive um episódio marcante de sua juventude – na qual é chamado de Demian. Ele conheceu uma linda modelo com quem teve sucessivos encontros amigáveis, inevitavelmente se frustrando ao tentar avançar rumo ao romance. Interpretado nessa fase pelo próprio diretor do longa-metragem, Roman Olkhovka, esse personagem revela as suas ambiguidades e os seus pontos frágeis nos flashbacks, ou seja, no complicado jogo do amor ao qual aparentemente não leva jeito. Dreamover intercala essa (re)vivência desenhada nos sonhos e a realidade afetada em graus diferentes pelo processo. Dmitriy (a versão mais velha e “real”) começa a perceber que recalcou as memórias dessa tentativa de envolvimento com a enigmática Masha (Angelina Savchenko). Quando jovem, ele desejava uma carreira de músico; ao ser relembrado disso, tira o violão do exílio sobre o guarda-roupas e arrisca alguns acordes. Desse modo, o contato com o passado vai tirando certas coisas de um lugar reprimido no inconsciente. Disso podemos deduzir a existência de uma crise interna, mas essa abordagem não chega a ser desenvolvida. O realizador está mais preocupado com construir os fragmentos conexos de um discurso amoroso.
Mas, Dreamover guarda uma carta na manga que justifica, inclusive, algumas aparentes incongruências do desenvolvimento. Se na cronologia de Demian (a versão nova e “virtual”) as pessoas utilizam telefones celulares, o tempo de Dmitriy é um futuro pouco diferente do nosso presente? Quantos anos se passaram de uma conjuntura a outra? Convém o espectador ter algo sempre em mente: os flashbacks são fruto de uma memória retrabalhada por um inconsciente repleto de recalques. Portanto, é bom desconfiar se não estamos diante de um narrador pouco ou nada confiável. Roman Olkhovka trabalha bem essas confusões entre acontecimentos, elucubrações e/ou construções mentais que servem para amenizar os fardos individuais. Mesmo que não se concentre tanto nesses limiares que podem ser contestados a todo o momento, a isso preferindo investir no romance entre Demian e Masha, o cineasta mantém ativos e interessantes os questionamentos citados e outros que é melhor não sinalizar a fim de evitar prejuízos à sessão dos leitores. Em nenhum momento Masha parece nutrir mais do que um sentimento de amizade pelo protagonista, mas nem isso refreia os ímpetos conquistadores do rapaz. Pode-se questionar, inclusive, a insistência como resultado do descrédito à negativa feminina, mas, novamente, é aconselhável aguardar o desfecho da história de amor.
E as coisas ficam mais complicadas (e curiosas) quando a realidade de Dmitriy começa a ser literalmente afetada por sonhos/rememorações. Como isso pode acontecer? Roman Olkhovka observa o que ocorre quando o protagonista deixa de se contentar com vislumbres do passado e passa a querer alterar memórias em prol do clímax feliz. A partir disso, o filme ganha outro dado de mistério que provoca a nossa curiosidade. Sem gerar tanta tensão entre as camadas de percepção e tampouco enfatizar o quão poroso pode ser o passado revisitado, o cineasta mantém a atenção nas ressonâncias do imbróglio amoroso. Os flashbacks poderiam ganhar contornos imagéticos e sonoros de sua fonte onírica? Claro que sim. No entanto, Roman realmente prefere torna-los visualmente mais próximos do convencional. Diferentemente do que faz Michel Gondry em suas produções de fundo e motivação românticos, Roman não demarca limites, assim mantendo uma semelhança visual entre realidade, memória e reprodução. Há pouca ênfase nas fronteiras, talvez para não desviar o foco das inconstâncias desse discurso amoroso que contém pitadas generosas de arrependimento e idealização. A cartada final ressignifica tudo de modo engenhoso e bonito. Curiosamente, em certo momento, alguém está lendo A Espuma dos Dias, livro de Boris Vian que Michel Gondry levou às telonas num filme homônimo.
Filme assistido durante o 13ª Cinefantasy, em junho de 2022.
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