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Sinopse

Laurent é um policial vivendo em Étretat, na Normandia. Ele leva uma vida rotineira em seu posto de trabalho à beira mar, e passa as noites junto à filha pequena e à companheira, com quem nunca se casou oficialmente. Enquanto o casal prepara a cerimônia, Laurent enfrenta um trauma grave no trabalho. Após este conflito moral, o homem se encontra à deriva, incapaz de cuidar da família, nem de si mesmo. Como trazê-lo de volta à terra?

Crítica

A apresentação de Laurent (Jérémie Renier) revela uma vida estável até demais. Este policial competente e admirado, habitando uma cidade pacífica à beira-mar, possui uma esposa gentil e uma filha atenciosa com quem compartilha bons momentos de cumplicidade. O trabalho proporciona alguns dias mais difíceis – o suicídio na praia –, mas nada que tire o seu sono ou lhe deixe marcas profundas. Laurent nunca precisou usar sua arma: a maioria dos casos se resolve em investigações, conversas e inquéritos judiciais. No início, não parece haver conflitos na jornada do herói cujas refeições à mesa remetem aos comerciais de margarina. O roteiro dedica ao menos 40 minutos a desenhar calmamente a psicologia do homem comum de classe média, nem repleto de falhas, nem particularmente altruísta. Ora, como tal figura poderia fazer a trama avançar? Xavier Beauvois opta por um trauma: após longas cenas cotidianas, o policial se confronta a um dilema grave. No entanto, o roteiro faz questão de introduzi-lo tarde na narrativa, para que o espectador se identifique com este homem primeiro. Enquanto a maioria dos filmes faria deste estopim o ponto de partida, o drama francês prefere que seu personagem possua autonomia em relação ao caso.

Drift Away (2020) possui a estrutura e a aparência de um filme maduro, cujo roteiro foi provavelmente desenvolvido durante anos, escrito e reescrito em ateliês, após muita pesquisa sobre a Normandia e o stress pós-traumático. As imagens possuem uma elegância e um controle excepcionais: cada minúsculo gesto de Jérémie Renier é acompanhado pela câmera discreta, que nunca chama atenção a si própria, e privilegia enquadramentos fixos quando possível. Há um propósito nítido para cada passagem ou simbologia (o barco em miniatura batizado Albatros, a reforma no sótão, o desejo de se casar com a companheira), além de um estudo preciso para a luz, o enquadramento, a profundidade de câmera e a duração de cada plano. Esta é uma obra profissional, no sentido estrito do termo: os cabeças de equipe são competentes, trabalhando em sintonia e fornecendo uma peça coesa. Aparentemente, Beauvois não permite qualquer forma de improviso ou acaso durante a filmagem, rígida como um relógio suíço. O resultado é admirável enquanto esforço conjunto, ainda que possua pouco senso de rebeldia, pouco sangue nas veias. O projeto cerebral evita tomar riscos.

Ao menos, a abordagem cirúrgica produz um efeito interessante quando aplicada ao material típico do melodrama. O mesmo roteiro, na mão de alguns cineastas hollywoodianos, se tornaria um martírio lacrimoso. Ora, o diretor desenha o trauma enquanto incapacidade de expressão: diante do maior obstáculo ético e moral de sua vida, Laurent não consegue chorar ou falar. A câmera aposta na habilidade do ator em transmitir um turbilhão de sentimentos através do rosto sisudo e da boca calada, em estado próximo da catatonia. Ele se torna um “homem que não estava lá”, para roubar a metáfora dos irmãos Coen, ou ainda um “homem sem cabeça”, na linguagem de Lucrecia Martel. O policial se apaga, como se um interruptor dentro de si tivesse sido desligado. Seria tentador incluir uma infinidade de símbolos do luto com os quais o herói pudesse extravasar a sua dor. No entanto, o policial se encontra em estágio anterior à exteriorização dos sentimentos. O filme condensa emoções explosivas numa pequena caixa, no caso, a casa do protagonista, onde o herói se isola de si mesmo. Beauvois escolhe representar os sentimentos mais complexos da maneira mais contida, oferecendo a si próprio um desafio que cumpre sem dificuldade.

O projeto se torna admirável não apenas pelo que constrói, mas também pelo que deixa de construir. Há um fino equilíbrio nos pontos de vista: o diretor evita romantizar a atividade policial, porém tampouco isenta a classe de responsabilidade pelo grave erro cometido. Os dilemas cotidianos estão distantes do senso de urgência: após a resolução de tantos roubos e chamadas de violência doméstica, os chamados perdem o caráter de espetáculo. O roteiro faz questão de incluir outros pontos de vista, justificando a cólera do lado adverso. Em paralelo, compreende tanto a atitude introvertida de Laurent quanto aquela, mais pragmática, da futura esposa Marie (Marie-Julie Maille), além da timidez do colega de trabalho Quentin (Victor Belmondo), igualmente envolvido no incidente. Beauvois percebe tanto a seriedade do caso quanto a necessidade de tratá-lo de maneira sóbria. Para quem espera algum expurgo libertador e uma oportunidade de redenção ao olhar dos outros, os rumos da trama serão frustrantes: o encontro simbólico entre algoz e vítima ocorre sem som, numa fronteira tênue entre o sonho e a realidade. Ao final, tudo e nada se revolve. Por mais otimista que seja a conclusão, ela guarda um gosto amargo.

Drift Away se converte numa experiência possivelmente pouco memorável a longo prazo – é difícil imaginar que venha a marcar um período, um gesto cinematográfico ou mesmo a carreira do cineasta. No entanto, por que precisaria ostentar tamanha ambição? O filme confirma e refina a visão humanista do cineasta, sem necessariamente subvertê-la, nem chamar atenção à mão do criador por trás de cada cena. Admira-se uma obra tão eficaz, embora afeita a sentimentos frios e meramente pontuados. O cineasta deve considerar a catarse como uma facilidade, quase uma confissão de incompetência, a exemplo dos fotógrafos que ainda recorrem às belezas óbvias do pôr do sol e dos reflexos em poças d’água. Jérémie Renier não ganha seu “momento do Oscar”, enquanto os agricultores indignados jamais aprofundam o amplo panfleto político sobre a opressão à classe trabalhadora. Os aspectos mais reflexivos se encontram fora de quadro – caso do destino de Julien quando se ausenta, e das intenções reais do herói quanto parte no mar. O filme não encerra a trajetória de seu personagem, muito pelo contrário: parece iniciá-la quanto o filme termina. É possível que as atitudes de Laurent ocupem o espírito do espectador muito tempo depois dos letreiros finais.

Filme visto online no 71º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em março de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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