Crítica
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Sinopse
Yusuke é um diretor teatral que repentinamente fica viúvo. Além da saudade, sobram o vazio e diversos arrependimentos. Dois anos depois, ele aceita voltar aos palcos e terá de lidar com a mulher que será sua chofer.
Crítica
Há tanto o que se falar a respeito de Drive My Car, longa escrito e dirigido por Ryûsuke Hamaguchi a partir do conto de Haruki Murakami (mesmo autor da história que foi adaptada no drama Em Chamas, 2018), que é complicado saber por onde começar. Numa camada superficial, se trata de perda e superação, de aprendizado e confiança, e do tempo que se leva para que esses caminhos sejam percorridos. Como pano de fundo, no entanto, há ainda um interessante debate a respeito do processo criativo de cada um, tendo como ilustração o clássico Tio Vânia, de Tchekov, adaptado para os palcos – e para as telas – inúmeras vezes, mas que, aqui, é visto sob outro prisma, partindo dos seus temas – envelhecimento e esquecimento – para a possível elaboração de outros vieses, como o recomeçar e o não desistir. Nenhuma dessas opções representam escolhas fáceis, mas não está na dificuldade que pressupõem o método pelo qual se validam. Pelo contrário, está no modo direto, quase óbvio, no qual apresentam suas conclusões o relato de uma análise evidente, por mais que dela se tente escapar. Esse olhar franco, mas não menos enternecedor, eleva o conjunto a um patamar poucas vezes alcançados em obras com similares intenções.
Com quase três horas de duração, Drive My Car pode representar um teste duro para espectadores desavisados. Ainda mais quando se percebe que muito pouco, de fato, acontece em cena, uma vez que o cineasta relega sua ação a um espectro mais discursivo e menos físico. Só o prólogo toma mais de meia-hora, mas é o tempo necessário para que a audiência não apenas compartilhe do drama vivido pelo protagonista, mas também dê um passo rumo ao entendimento de muitas das suas decisões. Há uma série de não-acontecimentos nesse início: a doença que pouca repercussão terá, a traição vista como algo menor, o encontro do marido com o amante. O não desenrolar de situações com alto potencial de interesse é feito de forma consciente pelo realizador. Mais interessado do que nessas repercussões imediatas, está ele propenso a analisar as consequências provocadas nos personagens envolvidos, como irão lidar com os fatos que agora tem em mãos e o quanto essas descobertas irão afetar suas jornadas. O maior desses eventos é o aviso de que “precisamos conversar hoje à noite”, um anúncio que nunca se concretiza, justamente por essa impossibilidade de lidar com o concreto.
Quando sozinho, Yûsuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima, de Vidas ao Vento, 2013) decide partir. Ator e diretor de teatro, é chamado para uma residência em Hiroshima, cidade que por si só carrega uma herança pesada demais para ser ignorada. A opção por esse destino não parece aleatória. Kafuku também tem com o que lidar, e esse passado não demonstra interesse em libertá-lo de tal fardo. Tanto que um desses fantasmas termina por acompanhá-lo, a ponto de se juntar à montagem a qual ele assumiu a coordenação. Poderia tê-lo evitado, mas prefere mantê-lo por perto, menos preocupado com a dor de uma lembrança e mais interessado no que essa relação poderá oferecê-lo. É uma decisão tomada com base no próprio egoísmo. Afinal, está atrás de qualquer migalha que o ajude a completar um quebra-cabeça que não mais tem acesso, da mulher que amou e não mais está ao seu lado. Os dois homens querem descobrir, um no outro, partes desse amor que perderam. Estão próximos por si, e não por aquele ao seu lado. O fato de estarem trabalhando juntos é não mais do que mera coincidência.
Se o amor é o maior das discussões, como deixar isso claro se não através de uma transformação pessoal. “Você afirma estar interessado, mas nem ao menos conhece o idioma dela”, o diretor aponta o óbvio. De outra parte, um homem decide aprender a linguagem de sinais para, enfim, se comunicar com a esposa, enquanto essa abandona família e amigos para seguir ao lado daquele que escolheu como companheiro de vida. São exemplos que repercutem pela segurança de seus atos. Em contrapartida, talvez o mais difícil dos acenos seja a permissão que o protagonista se vê obrigado a conceder a uma condutora que desconhecia, mas que, a partir daquele instante, se tornará sua mais constante companhia. A garota é de outra geração, a diferença entre os dois é de mais de vinte anos, mas as dores que sentem são próximas. Um se culpa pela morte da esposa, a outra assume a responsabilidade pelo falecimento da mãe. Não deixam de estar certos, por mais que ninguém em sã consciência pudesse, de fato, imputá-los de tal dolo. Ao trazerem consigo tais bagagens, sabem que entre o racional e a emoção, são raras as vezes que o primeiro consegue se sobrepor ao seguinte sem esforço.
Dissociados de reações impensadas, há muito o que ser discutido por esses personagens. Quando um solicita ao outro que lhe apresente a nova cidade, é na empresa de reciclagem de lixo que esse o leva. É exemplo do quão danificados ambos estão, e também do quanto precisam de qualquer relação significativa que possam estabelecer não apenas para curar suas feridas, mas também para encontrarem os meios necessários para seguirem com suas jornadas. O velho e desgastado será visto como recuperado e pronto mais uma vez para o uso, tanto o que foi descartado, como eles mesmos. Assim, tem-se noção do que, realmente, se depreende do momento em que se permite deixar o volante para que alguém diferente assuma a direção. Drive My Car busca nessas reflexões recuperar a tranquilidade de um amor tranquilo, como disse o poeta, mas sabe que mais pertinente do que respostas são os questionamentos que os levam até elas. E quando o gozo é tão profundo a ponto de permitir a criação de novas histórias, até aqueles libertados pelo prazer podem, se assim decidirem, se reinventar.
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