Crítica

Protagonista de Drugstore Cowboy, Bob (Matt Dillon) divaga sobre seu cotidiano de líder de gangue, deitado numa maca a caminho do hospital, no começo do filme. Com a clareza dos que estão diante da morte, ele se dá conta que durante boa parte da vida travou uma batalha previamente perdida, sem possibilidades concretas de vitória. Bob é de uma geração que contestou os valores das anteriores por meio do comportamento. O trabalho não era mais visto como algo que dignificava o homem, mas como elemento que o aprisionava, o reduzia. Para lutar contra os grilhões da normalidade, muitos, assim como ele, buscaram o escape das drogas, o entorpecimento para descolar-se da realidade, mesmo que momentaneamente, por pura impossibilidade de subvertê-la. As farmácias são o principal alvo do bando do rapaz que só pensa no quão chapado pode ficar usando determinado medicamento.

Não há planos, Bob não está traçando metas para si, nem mesmo para os seus. Ele só quer sobreviver a mais uma “viagem” para, logo depois, ir à próxima. Drugstore Cowboy não discute e/ou problematiza a questão das drogas, pura e simplesmente, como se fosse um manifesto ou algo que o valha.  Gus Van Sant promove uma abordagem mais ampla, embasada pelas ligações minuciosas entre os personagens. O policial constantemente na cola de Bob e dos comparsas, por exemplo, a princípio uma figura violenta, mostra ao longo do caminho uma preocupação insuspeita com aqueles jovens que andam fora da linha, sobretudo direcionada ao protagonista, com quem mantém uma relação quase de pai para filho. Dianne (Kelly Lynch), primeira-dama da gangue, tão viciada quanto qualquer um dali, demonstra querer mais, sendo o sexo a mais evidente das necessidades não supridas. Bob se excita muito mais com a adrenalina dos roubos que propriamente com as insinuações eróticas da namorada.

Em Drugstore Cowboy, Van Sant evita impor uma visão, não há inclinação a teses, o foco se estreita nas pessoas. Mesmo que haja certo idealismo na fuga consciente de Bob e companhia das regras de um entorno social venoso ao indivíduo, independentemente dos riscos, os danos vêm adiante. Contudo, essas reações às ações tortuosas não soam como lição de moral, pois mera constatação de uma verdade intrínseca ao viver em grupo. Por mais que não queiram, os personagens são duramente afetados pelo meio, responsáveis por suas escolhas perante a sociedade que enfrentam ora bravamente, ora com a covardia dos bandidos. Narcotizados, os jovens querem se diferenciar dos pais, dos avós, daqueles que pegaram em armas e fizeram a Segunda Guerra Mundial, dos que foram ao Vietnã, em suma, querem quebrar, talvez com afobamento demais e habilidade de menos, o estado das coisas.

A câmera segue esse bando de desajustados por uma paisagem cada vez mais hostil à sua busca por liberdade. Drugstore Cowboy é todo contado em flashback por um protagonista ciente da trajetória errática que o levou até ali, da batalha perdida pela impossibilidade de remar totalmente contra a maré. A tentativa de reintegra-se, de ter um trabalho regular, de desintoxicar-se como quem expurga a rebeldia do próprio corpo, é o único caminho para a sobrevivência, um preço alto, porém necessário, a ser pago por quem passou boa parte da vida sem amarras. Gus Van Sant não toma partido do insurgente, nem faz apologia ao careta, apenas mostra o desejo exacerbado de ditar as próprias regras, intenção que, na prática, esbarra nos poderes que regem a coletividade. A droga, neste caso, é um mero instrumento, não a questão em si.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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