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Sinopse

Candy Black, a humorista mais famosa do cinema, tem um surto de agressividade em frente às câmeras, sendo sentenciada pelo juiz à estadia numa clínica de reabilitação. No entanto, ela decide pedir à dublê Paula para ir em seu lugar. Aos poucos, a cópia toma gosto pela celebridade, e não deseja abandonar a personagem tão cedo.

Crítica

Candy Black é uma atriz de comédias rasteiras, cujas protagonistas tropeçam e caem no meio da rua, no campo, num casamento, dentro de casa. Considerada a humorista mais famosa de sua geração, ela repete personagens ridículas. O fato de a personagem ser interpretada por Drew Barrymore possui interesse particular. Afinal, a atriz encarnou múltiplas vezes a heroína de comédias escrachadas incluindo disfunções intestinais e objetos voando em direção a testículos, sobretudo em companhia do colega Adam Sandler. Ela inicia esta produção com uma paródia de sua persona, dentro do universo metalinguístico onde não suportaria tantas produções ruins. O bordão de Candy, “Acerte-me onde dói”, diz respeito tanto à dor física das múltiplas quedas quanto o valor embolsado por cada atuação. Em consequência, quanto mais ela se humilha, pior se sente, e mais dinheiro ganha. A fábula da princesa descobrindo que riqueza não traz felicidade se combina com a narrativa mais ambiciosa do palhaço triste, obrigado a fazer os outros rirem embora esteja descontente consigo mesmo.

A segunda protagonista, Paula, representa a dublê contratada para os ensaios, seguindo a diva caprichosa por todos os cantos. Drew Barrymore encarna esta personagem com uma fala excessivamente doce, olhos arregalados de ingenuidade, e uma prótese no nariz que satiriza as inúmeras atuações aclamadas graças à transformação prostética. Na maioria das comédias dramáticas, a primeira mulher seria fria e egocêntrica, enquanto a segunda se resumiria ao cúmulo da inocência. O melhor aspecto de Duas por Uma (2020) provém da disposição a brincar, ainda que timidamente, com este preceito. Partindo dos clichês habituais da dinâmica de opostos, o filme cogita a possibilidade de a dublê possuir ambições maiores do que se imaginava. A narrativa de conciliação entre diferenças se reverte no perigo da superação do original pela cópia: até que ponto a falsa Candy Black, assumindo o papel da atriz de verdade, conseguiria se passar pela outra? Graças à condução da diretora Jamie Babbit, e ao talento da protagonista, o resultado preserva a leveza e esconde as raízes decorrentes do suspense. No fundo, a trama sugere que pode haver apenas uma Candy Black, de modo que a imposição da atriz falsa implicaria na destruição de seu modelo.

As comédias sobre duplos, praticamente um subgênero à parte, costumam ser elogiadas por oferecerem a um ator a oportunidade de interpretarem papéis diferentes – na maioria das vezes, inversos. Este projeto vai além: a atriz muito agressiva e sua comparsa pretensamente inocente sofrem uma drástica transformação até se aproximarem do comportamento alheio. Conforme Candy abandona a fama e descobre paixões menos espetaculares (a curiosa opção pelo universo da carpintaria), a dublê conhece os prazeres da celebridade. Assim, a protagonista selvagem atenua a impulsividade cena a cena, embora mantenha o corpo desleixado e a fala ríspida, enquanto a protagonista doce adquire potência gradativamente, preservando a voz sussurrada e a expressão bondosa. O foco se encontra menos nas oposições do que nas transformações de uma em direção à outra. De qualquer modo, elas jamais atingirão a autonomia, sendo sempre associadas à versão espelhada. Talvez esta seja a condição cruel do projeto dotado de uma conclusão amarga: os dois Ícaros queimam suas asas e voltam ao lugar de onde vieram, juntos. Além de se assemelhar ao suspense, o projeto acena à tragédia.

No elenco, Drew Barrymore monopoliza o filme. O humor se ajusta aos dotes específicos da atriz, desejando comprovar amplitude dramática sem tropeçar e cair – Duas por Uma adota saudável distância do humor pastelão. Não por acaso, a única cena em que Paula vai ao chão ocorre quando a heroína percebe estar presa à personagem fictícia. Enquanto isso, o roteirista Sam Bain concebe uma mulher atraente sem a necessidade de se embelezar para os homens (uma vez afastada dos holofotes, Candy deixa os cabelos desgrenhados e a pele oleosa, sem ser considerada menos feminina por isso). Os personagens masculinos representam versões diluídas do príncipe (porém nem tão belo, nem tão perfeito) e do vilão (nem tão perverso assim). A comédia extrai sua força dos exageros simetricamente opostos, porém a diretora reserva as facilidades ao filme-dentro-do-filme, ao passo que a realidade das protagonistas possui nuances. Infelizmente, a produção desperdiça o talento de Ellie Kemper e Holland Taylor, em papéis pouco relevantes. Barrymore, também produtora executiva, elabora um projeto para chamar de seu.

Com ares de fábula a respeito da crença em si mesmo e da superação de obstáculos, a história se torna uma cautionary tale sobre tomar cuidado com o que deseja. Afinal, as amigas/inimigas encontram o limite da convivência: a guerra entre Paula e Candy se desenvolve no domínio da ficção. Diante das câmeras, apenas uma delas pode existir. Nos bastidores, entretanto, tornam-se colegas de quarto e demonstram curiosa tolerância com a outra – o mundo das imagens se torna mais perverso do que o real. Babbit se atém a sequências pouco ambiciosas (o mundo apático da carpintaria, as incoerências relacionadas ao universo digital, o rosto conhecidíssimo e ao mesmo tempo anônimo da atriz), apesar de se encontrar próxima da distopia nos moldes de Black Mirror. A diretora e o roteirista introduzem atalhos sempre que se aproximam de alguma reflexão amarga, compensando a desilusão com a promessa do romance. Talvez a última barreira a ultrapassar, para esta comédia que despreza a maioria das comédias, seria cogitar a felicidade feminina sem um homem a tiracolo. No entanto, a cineasta possui a consciência de que sua prioridade se encontra na disputa entre estas mulheres enganadas por si mesmas, e devoradas por um sistema que vai além da boa vontade das duas.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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