Crítica


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Sinopse

Luisa é uma jovem estudante de direito, morando em uma família privilegiada. Quando sua melhor amiga a convida para participar de um grupo antifascista, ela descobre uma nova configuração de comunidade, motivada pela luta contra a ascensão fascista na Alemanha. No entanto, as ações do grupo se tornam cada vez mais violentas. Até que ponto Luisa apoiará esta forma de protesto?

Crítica

Existe uma diferença fundamental entre um filme moral e um filme moralista. Ambos se dedicam às noções de certo e errado, bem e mal, virtude e decadência. No entanto, enquanto o projeto moralista afirma qual atitude é correta e qual constitui um equívoco, a obra moral deixa este julgamento por conta do espectador. O austríaco Michael Haneke representa um criador apaixonado por obras morais, já Terrence Malick possui discursos fortemente moralistas. O drama alemão E Amanhã... O Mundo Todo (2020) navega pela linha separando os dois conceitos. Ao discutir os limites do uso da violência para fins de resistência política, a diretora e roteirista Julia von Heinz ora pende para um campo, e ora para o outro. O centro deste embate se encontra numa personagem ambígua: Luisa (Mala Emde), estudante de direito vinda de família burguesa. Face aos crescentes movimentos de extrema-direita no país, junta-se a um grupo antifascista, incluindo alguns membros defensores de protestos pacíficos, e os demais estimando que apenas socos, tiros e bombas teriam efeito contra indivíduos racistas. Ora, os fins justificam os meios?

A discussão carrega aspectos fascinantes, sobretudo dentro da Alemanha que conhece muito bem os perigos do pensamento nazista. Ao resto do mundo, reverbera o crescimento de núcleos reacionários extremistas – inclusive no Brasil. A cineasta adota alguns mecanismos interessantes de narrativa: ela escolhe como protagonista a única personagem descobrindo o antifascismo pela primeira vez. O olhar do público coincide com aquele da estudante, pois a autora supõe que seu interlocutor também desconheça o funcionamento destas instituições por dentro. Somos levados a questionar com certo estranhamento este modo de vida, apesar da nobre motivação de combater os perigos totalitários. O filme jamais adere completamente às práticas destes revolucionários, ao passo que testa nosso pacto de empatia com Luisa: à medida que a intensidade dos confrontos aumenta, os colegas se afastam dos métodos adotados, porém a novata continua sedenta por ações concretas e agressivas. Devemos continuar do lado dela, compreendendo sua visão intervencionista de mundo, ou nos afastar de seu radicalismo crescente? Posto que enxergamos a trama pelos olhos dela, somos levados a questionar nossa própria empatia e apoio à heroína.

Julia von Heinz sabe tornar o argumento complexo ao revelar as múltiplas formas de pensamento dentro de cada grupo: tanto os antifascistas quanto os neonazistas possuem membros mais ou menos provocadores. Nesta tentativa de compreender as atitudes de ambos os lados, a produção atinge um incômodo paralelismo, dando a entender que as ações dos dois grupos se equivalem. A montagem faz questão de contrapor os gestos mais sangrentos dos antifascistas com as irônicas motivações de impedir a violência alheia; enquanto compara os métodos e os relacionamentos dos campos opostos. Embora se posicione junto ao campo progressista, o filme afirma que o extremismo pode aproximá-los, transformando-os em combatentes inversamente proporcionais – dois lados da mesma moeda. Luisa justifica a decisão de levar uma espingarda carregada ao comício supremacista: “Eles querem cadáveres!”, ao que o colega moderado responde: “E você, não?”. O tratamento nem sempre atinge patamares sutis, visto que apenas o dia a dia político interessa à trama. A família de Luisa, suas amizades e o cotidiano universitário são praticamente ignorados em nome da imersão obsessiva na práxis revolucionária.

E Amanhã... O Mundo Todo resulta numa obra em curto-circuito: em algumas cenas, ela denuncia os excessos da esquerda, para apoiá-los em seguida; então condena algumas divergências, mas tolera outras. É louvável que a diretora deixe o campo aberto ao questionamento do espectador, no entanto, ela própria soa indecisa quanto ao discurso que pretende transmitir através desta dicotomia insistente entre agressão e não-agressão. Esta é uma obra repleta de teses e antíteses, porém sem sínteses. O maior símbolo deste posicionamento vacilante se encontra na conclusão, quando cada cena contradiz a anterior. Ora, deixar o final em aberto é algo muito diferente de não estabelecer um final, suspendendo a narrativa de modo abrupto. O filme aparenta não saber como resolver seu impasse, nem quais conclusões extrair do sangrento aprendizado da protagonista. A indecisão se reforça pela atuação fria de Mala Emde, de rosto impassível e pouco vigor. Jamais conhecemos a fundo a relação dela com política, nem os traços de personalidade capazes de explicar uma radicalização tão rápida. Ela se converte num motor de conflito, uma faísca concebida para detonar a explosão na trama, ao invés de uma personagem autônoma, com arrependimento, raiva e outros instantes de oscilação de humor e convicção política.

Aliás, estranha-se o esforço do projeto em preservar a jovem: os grandes riscos afetam os colegas de luta, mas jamais Luisa. O ferimento na perna desaparece por milagre num corte da montagem, ela se encontra convenientemente ausente quando os policiais vasculham a ocupação, e foge do campo adversário duas vezes sem levantar suspeitas. Um dos únicos motivos sensatos para justificar a gradação extremista da estudante seria o fato de que nada a atinge de fato: os excessos recaem sobre os colegas (principalmente os pacifistas), não sobre ela. Após uma chocante cena de abuso sexual contra a protagonista (mostrada duas vezes), ela se torna a espectadora vingativa dos tormentos alheios – e legitimar as práticas da personagem por senso de revanche e descontrole emocional depõe contra a discussão política em si. A estética carrega similar senso de indecisão: a diretora opta pelo ultranaturalismo da câmera na mão, tremendo entre os rostos banhados em luz natural, com trabalho impecável de sons e ruídos. O espectador é inserido dentro do grupo, no meio dos socos e pontapés, em posição de um guerrilheiro suplementar. Às vezes Julia von Heinz privilegia a imersão e a busca pelas sensações; em outros momentos, deseja promover o distanciamento crítico. O resultado tem um pé nas virtudes de cada uma destas abordagens, porém sem decidir onde deveria se estruturar.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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