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Sinopse

Portando as cinzas de uma cantora lírica, o navio Gloria N. deixa Nápoles com direção à Grécia. Durante a viagem, a embarcação acolhe refugiados sérvios, o que traz problemas à tripulação quando o inimigo dos embarcados chega.

Crítica

Em 1984, os votantes do prêmio David Di Donatello (o Oscar da Itália) não conseguiram resolver o impasse ao escolher a melhor produção italiana. No ano anterior, Ettore Scola havia assinado o magistral O Baile e Federico Fellini, o não menos maravilhoso E La Nave Va. Em uma decisão salomônica, a Academia Italiana concedeu à ambas as produções a principal honraria da noite. É verdade que no final das contas, O Baile se saiu melhor nas competições internacionais, levando o Cesar, a indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (pela Argélia) e o Urso de Prata para seu diretor no Festival de Berlim. Enquanto isso, E La Nave Va foi o escolhido pela Itália para representar o país no Oscar (mas não foi indicado) e venceu o Globo de Ouro daquele país como Melhor Filme. Duas obras primas, produções imortais, realizadas no mesmo ano, por dois de seus principais mestres. O cinema italiano deve lembrar com carinho aquele 1983.

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Na trama de E La Nave Va, Federico Fellini transforma o navio do título em um microcosmos da Europa pouco antes da Primeira Guerra Mundial. O ano é 1914 e um grupo de artistas está chorando a morte de uma de suas grandes cantoras de ópera: Edmea Tetua (Janet Suzman). Seu último desejo era ter suas cinzas jogadas em alto mar, próximo à ilha onde nasceu, e seus entes queridos fretam um luxuoso navio para este fim. Na embarcação, cantores, atores, músicos, um Grão-Duque e até um rinoceronte estão presentes para o funeral. Também por lá está Orlando (Freddie Jones), um jornalista italiano, que está escrevendo uma matéria sobre a falecida diva. Para o espectador, o repórter serve como narrador e confidente, visto que conversa conosco falando diretamente para a câmera. Os dias de viagem vão passando e acabamos conhecendo melhor cada um daqueles tripulantes, bem como suas atitudes para com um grupo de Sérvios que é resgato em pleno mar. Quando um encouraçado austríaco ameaça a viagem, cabe aos viajantes tentarem reverter a situação. Fellini brinca com a linguagem cinematográfica em E La Nave Va, iniciando seu filme como se tivesse sido realizado em 1914, época em que se passa a história. Os primeiros cinco minutos da produção pagam tributo ao cinema mudo, com os passantes se divertindo (e encarando) a câmera. Vamos acompanhando a chegada dos protagonistas da história em uma apresentação inventiva e condizente com a trama que acompanharemos. Só depois de as cinzas de Edmea Tetua chegarem ao cais é que o longa-metragem passa da coloração sépia para o tecnicolor e, miraculosamente, o som nos é revelado.

Usualmente, existe um contrato entre o diretor e o público para que este alcance a imersão total. Durante a história, para que nunca lembremos de que estamos vendo um filme, algo irreal, o cineasta precisa esconder como pode as traquitanas do seu ofício. Em troca, nossas descrenças são colocadas de lado e abraçamos a magia, nos deixando levar pela obra. Em E La Nave Va, Fellini não está preocupado com este contrato. Pelo contrário, ele faz questão de que lembremos a todo momento que tudo não passa de fantasia naquele barco. Para tanto, o céu e o mar são visivelmente artificiais, o set do navio (por mais luxuoso) é notadamente um set cinematográfico. Até o pássaro que bica sua entrada pelo restaurante é falso (ao menos o que está na janela). Se já não bastasse isso, o narrador da história quebra a quarta parede, conversando com o público, e até o cenário flutuante do navio nos é mostrado nos minutos finais do filme. Ou seja, Federico Fellini é um ilusionista mostrando seus segredos. Ele sabe que a mágica não ficará menos interessante caso todos entendam como ela funciona. E o mestre estava certo. Fellini faz um interessante paralelo entre a nobreza europeia pré-guerra mundial e os convidados daquele navio, mostrando que o passado abastado ficaria apenas na memória daqueles ricos cidadãos. A forma como a pobreza os invade – representada pelos refugiados sérvios – e como cada um reage aquele momento é um comentário sagaz do cineasta, que não abandona seu senso de humor mesmo apontando sua câmera para assuntos mais sérios. Na melhor cena do longa-metragem, os pavões cantores de ópera fazem uma competição vocal em plena sala das máquinas, entretendo os trabalhadores braçais enquanto massageiam seus egos. Uma crítica certeira do cineasta à alta cultura, que não parecia muito afeita a chegar nas camadas mais pobres, o fazendo apenas na forma de uma competição leviana.

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Com excelente elenco – com destaques óbvios para Freddie Jones, Pina Bausch (como a irmã cega do Grão-Duque) e Barbara Jefford (a competitiva cantora Ildebranda Cuffari) – o diretor faz uma rica alegoria da Europa do começo do século XX, utilizando de sua verve cômica e de sua poesia imagética para entreter e fazer pensar. Mais uma obra prima do maestro italiano de tantos filmes inesquecíveis. E La Nave Va talvez não esteja no Top 5 de muitos apreciadores de Federico Fellini, mas tem predicados mais do que suficientes para uma posição de prestígio em sua filmografia.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista, produz e apresenta o programa de cinema Moviola, transmitido pela Rádio Unisinos FM 103.3. É também editor do blog Paradoxo.
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