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Sinopse

Um encontro com o músico compositor, poeta, sociólogo e pensador Negro Léo. Ele articula ideias sobre o desenvolvimento da música, sobre a política brasileira e internacional, sobre a ascensão das religiões neopentecostais e sobre a obsessão pelas redes sociais, em paralelo com sua própria história de vida.

Crítica

A princípio, este documentário se encaixa na categoria de “filme caseiro”: É Rocha e Rio, Negro Léo é quase inteiramente filmado dentro do apartamento do artista em Perdizes, São Paulo. Trata-se do genro da diretora Paula Gaitán, marido da também cantora Ava Rocha. Todos eles estão presentes em seja, seja em frente das câmeras, seja pelos reflexos nos espelhos. A constituição de um filme de família, dentro do qual Negro Léo se encontra sentado em cadeiras e sofás enquanto discorre sobre sua trajetória e sobre a política, poderia ser considerado um projeto fácil, pouco refinado. A câmera na mão treme de um lado para o outro, ajeita o foco e o enquadramento dentro de um plano sem cortes. A luz é natural, a movimentação é mínima. Existe uma aparência de despretensão, mesmo de amadorismo (mais no sentido de afetuosidade do que de precariedade) diante do projeto.

No entanto, desvenda-se aos poucos um mecanismo muito mais complexo do que se enxerga na superfície. Primeiro, não existe uma única entrevista com Negro Léo, caso se considere entrevista como uma troca de perguntas e respostas. O artista discursa livremente diante da câmera, falando sobre o que quiser, quando quiser. Assim, estamos muito mais próximos da performance do que explicação. Segundo, o jovem artista, profundamente eloquente e culto, também exerce controle sobre a direção. “Se quiser dar um corte aí, eu vou mudar de tema”, ele avisa a Paula Gaitán. “Querem que eu ligue uma luz?”, pergunta ao diretor de fotografia Lucas Barbie. Apesar dos longuíssimos planos-sequência, dentro dos quais o protagonista disserta sobre a China e o Brasil, sobre a evolução da música e sobre o governo PT, passando pelas redes sociais e pelo racismo, existe uma montagem interna cuidadosamente orquestrada pelo próprio Negro Léo. Ele decide quando mudar de tema, quando atar dois tópicos até então desconexos (a evolução tecnológica e a Bíblia, por exemplo).

 

 

O ato de criação compartilhada entre a cineasta e o protagonista se torna tão fusional que pode ser difícil distinguir Negro Léo do filme sobre o Negro Léo. Entretanto, talvez esta seja a separação mais importante a fazer, neste caso: perceber onde se interrompe a representação de si e se inicia a representação do outro, ou em que medida o controle da direção se difere do descontrole diante de um artista se comunicando livremente. Ora, Paula Gaitán efetua um filme sobre a palavra. Ao contrário de tantos projetos exibidos na Mostra de Tiradentes, nos quais os diálogos buscavam suprir a dificuldade da narrativa em contar uma história, aqui os diálogos são a história, eles constituem o personagem central. Para se retratar um músico e pensador, busca-se a imagem do som. A experiência audiovisual valoriza a autonomia sonora, seja no registro da fala ou da música, fundidos com maestria pelos gestos radicais de Negro Léo e pela presença discreta da diretora, que se apresenta no início para então se camuflar atrás do dispositivo cinematográfico.

“Mas como entrar no apartamento com a câmera?”, pergunta-se na cena inicial. “Vamos vivendo”, é a resposta. Existe um senso não de improviso, mas de liberdade extrema nas formas e no dispositivo utilizado pelo documentário. A inteligência de Negro Léo, a maneira como articula temas tão distintos sem jamais perder o foco, sem esbarrar na arrogância ou autoimportância, fazem deste filme um projeto raro de discussão sobre a contemporaneidade. De certo modo, É Rocha e Rio, Negro Léo poderia ser considerado o filme anti-Bolsonaro por excelência: ele constitui uma ode ao conhecimento, ao poder emancipador da arte, ao raciocínio, ao valor civilizatório da argumentação. Longe de qualquer defesa idealizada ou romântica da cultura, a diretora oferece um progressismo pragmático, do tipo que pensa na economia em paralelo com o desenvolvimento, preocupa-se com o salário do mais pobre enquanto investiga as possibilidades do processo criativo. Negro Léo aborda os mais diversos tabus sem o peso de um tabu, criticando tanto algumas vertentes da esquerda quanto a direita, munindo-se de justificativas, questionando seu próprio lugar de fala enquanto homem negro, jovem, artista e morador de um bairro nobre.

Por fim, raros filmes reflexivos conseguem ser tão divertidos e despojados quanto este. A longa duração pode provocar receio no espectador, mas seria importante questionar o ritmo, ao invés da duração: o documentário possui fluidez, articulando as falas de Negro Léo com apresentações musicais do mesmo, alternando temas com a informalidade de uma conversa de bar. Esta é a vantagem de se fazer um filme em família, dentro de casa: a intimidade entre os criadores e a despreocupação quanto ao tempo diluem a formalidade das discussões, rompem com a aparência meio rígida das imagens compostas demais, controladas demais, cortadas no instante exato para a aparência de profissionalismo. Para um artista do improviso e da associação de ideias, Gaitán oferece uma narrativa igualmente líquida, elaborada durante a captação, com a câmera ligada. Um filme-processo, enfim. Existe uma sensação de tempo real, uma possibilidade fascinante de cinema “ao vivo” neste projeto singular.

Filme visto na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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