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Sinopse

Um intelectual de esquerda é confrontado às limitações de suas ideias. Tanto o pai idoso, um teórico, quanto a filha, militante de movimentos estudantis, questionam a fronteira que separa teoria e prática. Por isso, ele vai à periferia, onde descobre que não é admirado da mesma maneira que nas universidades.

Crítica

Diante de polarizações raivosas entre direita e esquerda, da necessidade impensável até então de reafirmar que a ciência é importante, a universidade pública é fundamental, a Terra é redonda e a ditadura foi odiosa, os diretores Jean-Claude Bernardet e Rubens Rewald decidem superar a reafirmação do óbvio. #eagoraoque (2020) representa um filme feito por pessoas de esquerda, para pessoas de esquerda, a respeito dos limites da aplicação prática destes princípios na atual sociedade. A dupla parte do pressuposto que os pensamentos progressistas se encontram face a um dilema fundamental: como levar os conceitos de igualdade social e distribuição de renda à maioria pobre, que ainda vota à direita? Por que tantos moradores da periferia se sentem mais representados por Jair Bolsonaro e Bruno Covas do que Fernando Haddad e Guilherme Boulos? O filme parte do pressuposto que a esquerda precisa se questionar quanto à fronteira separando teoria e prática. Trata-se apenas de uma questão de linguagem – retirando os jargões universitários, a voz chegaria aos mais pobres? Ou então os conceitos da Academia, elaborados por sujeitos privilegiados – em sua maioria, homens brancos – seriam essencialmente incapazes de representar a periferia?

A figura escolhida para canalizar esta discussão é Vladimir Safatle, interpretando uma versão de si mesmo: o intelectual popular tanto nas universidades quanto nos canais de televisão, culto, conhecedor de música clássica e autor de diversos livros. Safatle também constitui uma das vozes progressistas mais questionadoras da própria esquerda, tendo elaborado textos preciosos a respeito dos motivos que levaram à queda do PT após anos de crescimento econômico. O protagonista aceita ser atacado, da primeira à última cena, seja pelo pai idoso (Jean-Claude Bernardet), pela filha adolescente, pela representante negra de um banco popular (Palomaris Mathias), por um grupo de jovens da periferia ou por um transeunte (Valmir do Côco). Durante uma peça de teatro, ele é confrontado agressivamente por um jovem ator negro que dispara gritos a poucos centímetros de seu rosto. Trata-se de uma obra violenta: os criadores substituem o lema de união contra um inimigo comum pela necessidade de, em primeiro lugar, redescobrir nossos métodos de ação.

O roteiro adota um caminho interessantíssimo, não-linear, nem cronológico. As cenas se articulam por livre associação de ideias – seria possível imaginar o mesmo material remontado em outra ordem, sem perda de significado. Estas esquetes semi-independentes se organizam pelo aumento progressivo da tensão: o pai idoso passa a praticar o tiro e descobrir o prazer da automutilação, a filha ergue o tom da voz, e os encontros de Safatle serão cada vez mais incisivos, culminando numa excelente cena junto a jovens adultos negros. O filme combina cenas puramente fictícias com trechos de arquivo, onde Safatle explica seu ponto de vista a jornalistas e universitários. A colagem de materiais e fragmentos resulta num potente exercício de resiliência da intelectualidade contemporânea, entregando-se ao desgastante confronto de ideias (mas não seria esta, afinal, a raiz da política?). Ora, o protagonista discute com pessoas que, supostamente, compartilham o mesmo grande campo de ideias, e talvez tenham votado no mesmo candidato à presidência no segundo turno.

#eagoraoque consiste num esforço psicanalítico da esquerda se digladiando com seus traumas, testando o alcance de seu discurso. Um dos principais méritos do projeto se encontra na percepção de múltiplas esquerdas, dotadas de métodos radicalmente diferentes para defender, no final, o mesmo princípio de justiça social e igualdade de oportunidades. Bernardet e Rewald permitem que a linguagem reflita estes choques: há cortes abruptos demais, flashes de imagens desconexas durante as cenas. Imagens caseiras de telefone celular se misturam à captação de entrevistas na televisão, e à própria captação digital fictícia, de qualidade simples. O mundo digital se faz presente pelas texturas de imagens, embora o projeto não debata o papel das redes sociais e da Internet na possível renovação política. Existe um aspecto caseiro, urgente e descompromissado nesse cinema de excessos, orgulhoso de suas arestas. Contra a busca por imagens polidas, os cineastas privilegiam uma estética de asperezas – em última instância, eles também se questionam, enquanto artistas, sobre o alcance de seu discurso. Por este motivo, compreende-se que Safatle seja descrito enquanto pianista, ao passo que a filha canta e o pai possui uma trajetória no cinema.

Por que uma obra tão incendiária, circulando pelos festivais brasileiros há meses, tem conquistado atenção modesta dos intelectuais e críticos? Estaríamos presos demais ao pacto narcísico, à impressão de superioridade moral em relação à direita anti-intelectual que se instalou no poder, para enxergar as falhas graves de nosso posicionamento? Safatle, defensor de que a esquerda do PT não teria sido de esquerda o suficiente (ela teria empoderado os mais pobres pelo consumo, ao invés de formar uma classe média crítica), aceita entrar no ringue das ideias e das imagens. O cinema se faz esporte de combate, enquanto a intelectualidade se rende ao aspecto físico do confronto por meio de gritos, insultos e afrontas pelas ruas. A massa de estudantes da USP se cala para admirar o professor, porém na periferia, um grupo de menos de dez pessoas despreza o palavreado do intelectual. Há uma reflexão fundamental a se extrair deste projeto que privilegia a elaboração de perguntas à formulação de respostas. Vale notar que o filme sobre o futuro das esquerdas inclui imagens de Guilherme Boulos e Manoela Dávila, porém não de Lula e dos caciques do PT.

Filme visto online na 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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