Sinopse
O filme faz um retrato da Islândia na época de Natal, para isso se valendo de 56 cenas independentes. A atmosfera do país é representada em diversos cenários, tais como um museu, uma sala de estar, uma escola, uma fazenda abandonada e um matadouro de galinhas.
Crítica
O espectador deste curioso projeto pode acreditar, a princípio, estar diante de um documentário. Fragmentos isolados apresentam flashes da Islândia no século XXI: um carro passando pelo lava-rápido, escavadores numa montanha, uma mãe cuidando de seu bebê, um atleta estrangeiro reclamando por telefone da adaptação ao frio. Alguns trechos, de fato, são difíceis de falsear, a exemplo do parto natural e do cachorro amedrontado pelos fogos de artifício. No entanto, a presença da câmera em 56 cenários diferentes, impecavelmente posicionada, com luz e som bem cuidados – mesmo nos diálogos de personagens à distância – permitem compreender que se trata de uma ficção de aparência documental.
Assim, não existe um protagonista único, a não ser que se considere a Islândia como real fio condutor das esquetes. Os trechos são unidos pelo diretor Rúnar Rúnarsson não apenas pelo conceito estético (o plano fixo, a ação em espaço único, a duração de pouco mais de um minuto por cena), mas também pelo tema natalino. A “narrativa”, se podemos chamá-la assim, se passa nas festividades entre a véspera do Natal e os primeiros dias do ano seguinte, incluindo a virada do ano. O amplo painel inclui, portanto, as famílias numerosas que se reúnem para as festas, o homem que comemora sozinho em sua casa, o idoso num asilo, entre outros. Ao lado deles, outros segmentos são livres de um marco temporal: os pais admirando a filha dançar, a aluna brigando com o professor de educação física, um navio em alto mar etc.
Existe evidente liberdade na conexão destes fragmentos. Se por um lado beiram a aleatoriedade, por outro sugerem mínimas costuras entre um bebê mimado pela mãe e uma criança morta num caixão, por exemplo. O cuidado extremo do cineasta com a composição destes quadros fixos, e a habilidade para contar histórias dentro de um formato tão restrito remete ao trabalho do sueco Roy Andersson, porém sem o humor típico do diretor de Um Pombo Pousou num Galho Refletindo Sobre a Existência (2014). Na ausência de gags e metáforas, resta um retrato descritivo, que parte de tons graves (denúncias de famílias desestruturadas e caos econômico) a segmentos mais leves conforme os grupos se reúnem para as festas. O espectador se encontra diante de uma versão cinematográfica do álbum de retratos, folheando instantes que pretendem sugerir, por si só, toda a construção de contexto e personagens envolvidos.
“Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá”. O famoso microconto de Augusto Monterroso surpreendia pela brevidade, e também pela capacidade de instigar seu leitor a completar a situação com sua própria vivência. Ecos funciona de modo semelhante, jogando o interlocutor numa ação em andamento, dentro de uma narrativa que ignoramos. Nenhum personagem é “apresentado” ao espectador: cabe a nós deduzirmos quem são. Rúnarsson não demonstra interesse em qualquer cena espetacular, pelo contrário: sua compilação inclui momentos comuns, de fácil identificação, cujo ruído de linguagem (voluntário, é claro) encontra-se apenas na composição controlada demais para um cenário espontâneo. Trabalha-se assim com a magia do banal, a idealização do cotidiano.
Ora, se os mais de cinquenta fragmentos sintetizam certa ideia da Islândia, que ideia seria essa? Talvez esse seja o aspecto mais fraco do filme: ele amplia tanto suas representações que termina por soar genérico. Nenhum tema retratado (a ganância, as divisões políticas, a religião, a união durante os feriados) reaparece com força suficiente para compor um discurso coeso. O diretor certamente tem muito a mostrar, mas pouco a dizer através desta ficção que deslumbra por sua estética, mas não pela capacidade de reflexão. Ecos se torna um exercício mais interessante por seu dispositivo do que pela execução, como uma brincadeira retórica ao mesmo tempo pequena – por trazer minúsculas histórias inconsequentes – e gigantesca – por tentar abarcar um país inteiro, com mais de cinquenta locações e centenas de personagens. O diretor desperta mais curiosidade pela ousadia do que pela visão de mundo.
Filme visto na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2019.
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