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Sinopse

Anjani se muda para Nova Delhi quando consegue um pequeno emprego de "afastador de macacos". Ele deve conter os violentos animais que atacam a cidade, sem saber exatamente como desempenhar essa tarefa. Enquanto o fracasso na missão ameaça o rapaz de demissão, o cunhado, um guarda com medo de armas de fogo, também luta para se manter no cargo.

Crítica

Esta comédia indiana parte de uma premissa simplíssima: Anjani (Shardul Bhardwaj) muda-se para a Nova Delhi quando o cunhado lhe promete um emprego no governo. Trata-se de um cargo minúsculo: “afastador de macacos”. Um problema, no entanto: o rapaz tem medo dos símios agressivos, responsáveis por atacar transeuntes e furtar comerciantes locais. Este conflito poderia se resumir num pequeno curta-metragem, uma fábula diminuta sobre o homem versus a natureza. No entanto, o diretor estreante Prateek Vats retira do conflito uma metáfora repleta de bifurcações sobre a Índia contemporânea, especialmente no que diz respeito às relações de gênero, etnia, xenofobia, os abismos entre classes sociais e a sensação de abandono do cidadão pelo Estado. Os estranhos sons mencionados no título são retirados das “palavras” que Anjani supostamente deveria usar com os macacos para domesticá-los. Ironicamente, o rapaz jamais conseguirá dominar o tom exato das palavras mágicas - mesmo o título parte de uma tragicômica constatação do fracasso.

Não por acaso, a trama é conduzida por dois homens infelizes e impotentes: por um lado, o migrante dominado pelos animais que deveria dominar, por outro lado, o cunhado (Shashi Bhushan), um guarda pouco eficiente que se apavora diante da obrigação de portar uma arma de fogo. Ambos se veem impelidos pela honra masculina a acatarem com decisões brutais das quais discordam. Vats desenha o poder invisível e absurdo, em moldes kafkianos: o protagonista jamais conhece o chefe para quem trabalha, recebendo as ordens de terceiros, enquanto presencia o descumprimento de regras por parte dos superiores. Ele não recebe equipamentos adequados nem formação para o cargo, aparentemente desprovido de qualquer forma de supervisão. No entanto, quando se ausenta durante uma pausa para o café, recebe uma grave reprimenda. Alguém está observando o domador de macacos sem que ele saiba, assim como os próprios macacos o observam com aparência de desdém. O humor focado na pequeneza do homem contra a futilidade do poder encontra seu ápice no momento em que Anjani é preso acidentalmente nas gaiolas reservadas aos animais.

Eeb Allay Ooo! (2019) trabalha muito bem a sensação de invisibilidade. A câmera faz questão de inserir o personagem em multidões, caminhando tristemente com suas placas pelas avenidas protegidas ou perdido em corredores escuros do bairro onde mora. O cineasta se concentra na confusão do espaço urbano, prestando especial atenção às pessoas de poder meramente simbólico, como os pequenos guardas e vigias. Critica-se então uma impressão de controle, força e virilidade que sucumbe à pressão: ninguém sabe ao certo como desempenhar a sua função. Quando Anjani decide se vestir de lêmure gigante para afastar os macacos – numa sequência excepcionalmente bem dirigida e fotografada -, ao invés de ser parabenizado pelos chefes, é ameaçado de demissão. A humilhação dos funcionários por meio da obrigação de desempenharem um trabalho mal pago, difícil e sem propósito faz parte da hierarquia descrita. Diante deste cenário, driblar as regras em busca de algum facilitador para as tarefas soa como uma trapaça inaceitável. Quanto mais o protagonista se insere no meio proposto, mais será punido por isso. A estrutura prevê o fracasso e se alimenta dela.

Enquanto Anjani busca afugentar os primatas, a câmera faz o possível para se aproximar deles. A comédia poderia ridicularizar o conflito improvável do protagonista, mas faz questão de filmá-lo de maneira naturalista. Os animais reais, captados sem qualquer auxílio de efeitos visuais, transparecem um comportamento imprevisível, difícil registrar de maneira controlada pela direção e pela equipe técnica. No entanto, Vats constrói enquadramentos impressionantemente orquestrados e iluminados, com movimentos de câmera fluidos ao acompanhar os gestos espontâneos dos animais. O diretor atinge uma combinação preciosa entre a aparência documental e o refinamento do controle possível apenas na ficção. A janela em scope não favoreceria a agilidade para travellings ou panorâmicas, no entanto, o diretor de fotografia Saumyananda Sahi transforma os macacos em personagens autônomos dentro da trama. Eles possuem um arco dramático próprio: em sequências como o desfile do governo, a montagem paralela sugere a ansiedade e nervosismo de um dos animais, ao passo que o enquadramento se aproxima cada vez mais dos rostos e corpos, como se passássemos a conhecê-los melhor.

Eeb Allay Ooo! tem a ótima iniciativa de comparar Anjani e os animais em suas trajetórias. Ambos se sentem presos, ambos estão dispersos pela cidade onde ninguém os quer, sendo repelidos apesar de não terem para onde ir. A fantasia de lêmure representa a perfeita fusão entre ambos, além de trazer uma leitura tragicômica da emancipação pela desumanização, ou pela humilhação pública. O protagonista se torna percebido e amado apenas quando não se parece mais consigo mesmo. Enquanto isso, a abertura e o encerramento, utilizando sons de animais, fazem desta fábula uma história cíclica, na qual a jornada do personagem se desenvolve, sem necessariamente se resolver. Vats constrói uma comédia triste, abordando a desigualdade social na Índia através da poesia agridoce. Ao invés das trapalhadas e dos dramas, privilegia o silêncio, o desconforto, o não-pertencimento muito bem retratado por enquadramentos ou pela duração dos planos. Nas mãos de um cineasta menos talentoso para o equilíbrio de tons e trabalho de atores, poderia resultar num projeto cartunesco. Apesar da aparência de filme pequeno, o projeto demonstra uma capacidade impressionante de lidar com a complexa sociopolítica indiana.

Filme visto online no We Are One: A Global Film Festival, em junho de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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