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Sinopse

O duro processo de adaptação de famílias sírias que, deixando tudo para trás, deixem começar de novo no Uruguai.

Crítica

As guerras no Oriente Médio (mas não apenas elas) causam um êxodo tão numeroso quanto dilacerante. Milhares de pessoas se distanciam de entes queridos, se desenraizando em deslocamentos que visam a manutenção de suas vidas. Em El Gran Viaje al País Pequeño, a cineasta Mariana Viñoles é tocada particularmente pela tragédia dos sírios refugiados no Líbano que recebem ajuda humanitária do governo uruguaio. O então presidente latino-americano, Pepe Mujica, convida 120 desses asilados para recomeçar no país com um pouco mais de três milhões de habitantes, onde não há mesquitas, ou seja, eles serão desbravadores por lá. O filme pode ser divido em três partes distintas. A primeira dá conta do processo de seleção, no qual a cineasta escolhe um jovem casal à espera do terceiro filho como protagonistas da história. Eles dizem à câmera que o Líbano não os trata como merecem e fomentam a esperança de que na América as coisas serão bastante diferentes. A decolagem é um momento importante dessa fração inicial, pois representa a essas pessoas sofridas a sonhada oportunidade de prosperidade num território supostamente acolhedor.

É claro que há muitos entraves à adaptação dos sírios no Uruguai. A língua, a saudade, a falta de perspectiva imediata de conseguir emprego e enturmar-se. Porém, o segundo instante de El Gran Viaje al País Pequeño mergulha numa espécie de deflagração do paraíso perdido, sobretudo ao mostrar os migrantes reclamando das falsas promessas dos anfitriões, situação que a médio prazo os colocaria novamente numa posição de vulnerabilidade. A realizadora desenha essa tensão, mas não apresenta detalhes importantes, de certo modo, fazendo ela mesma o papel de relativizar os erros do Estado. Ao invés de colocar nessa equação a posição do governo, possivelmente confrontando-a com o porquê da expectativa frustrada dos recém-chegados, Mariana filosofa sobre o fato dos uruguaios acreditarem que moram no melhor lugar do mundo. E isso lhe parece suficiente. Assim, não ficamos sabendo se há um exagero por parte da gente que se sente desamparada ou mesmo se o comprometimento uruguaio ficou realmente aquém. Essa grave lacuna fica ali, incomodando.

Outra fragilidade de El Gran Viaje al País Pequeño é o fato da cineasta não trabalhar bem como a eterna saudade dos sírios, núcleo da terceira parte. Ela chega a deixa-los a mercê de parecerem ingratos. Há o sujeito reclamando veementemente, dizendo-se impossibilitado de criar ovelhas ou vacas para sustentar a família. Adiante, instalado numa fazenda, ele demonstra insatisfação e diz que o estágio anterior era “menos pior”. O casal protagonista também demonstra vontade de voltar à Síria, apesar da guerra civil e de todas as tensões por lá. Um visitante (amigo?) funciona como esclarecedor, falando que a vida na Europa para os expatriados é difícil e que voltar ao Oriente Médio não é opção. À frente, o reclamante prosperou ao ponto de comprar um carro no Uruguai. Pelo modo como ordena esse desgosto com o presente, algo tão aparentemente desmedido que aponta ao passado brutal como saudoso, Mariana não está necessariamente sublinhando a dificuldade, mas a pouca disposição dos refugiados para deixar a poeira baixar e entender o alto valor da paciência.

Não bastasse o posicionamento ambivalente, para dizer o mínimo, El Gran Viaje al País Pequeño se demora em pequenas rotinas que pouco agregam. E o filme investe um tempo valioso nisso. Poderia utiliza-lo para melhor compreender/confrontar a política de seu país relacionada os imigrantes recebidos de braços abertos no aeroporto pelo próprio Pepe Mujica. Contrapondo tais desperdícios, algumas cenas soltas são particularmente potentes por sua carga lírica, como a mãe de família jogando futebol despreocupadamente ou o sacrifício do cordeiro fundindo as tradições muçulmanas e os mitos de formação dos pampas uruguaios. Sintomaticamente, os jovens se aclimatam mais fácil à mudança, haja vista o ímpeto de emancipação das duas adolescentes que decidem morar sozinhas na cidade para estudar. Pode parecer pouco, mas a mecha dourada aparente do cabelo também é um indício de reconfigurações no horizonte, de uma integração que tende a arrefecer a rigidez da tradição muçulmana. Pena que nem sempre a cineasta atente, assim, às sutilezas.

Filme visto online no 48º Festival Internacional de Cinema de Gramado, em setembro de 2020

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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