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Sinopse

Inés faz uma viagem de férias com o namorado que conhece há pouco tempo. Após contar ao rapaz um pesadelo recorrente, uma tragédia ocorre no quarto de hotel. Meses depois, a cantora e dubladora profissional começa a ser perseguida por "invasores" que controlam seu corpo, sua mente e sua voz.

Crítica

Há maneiras muito distintas de interpretar El Prófugo. A história de Inés (Érica Rivas), cantora e dubladora profissional que passa a ser perseguida por presenças estranhas após o término de um romance, pode ser compreendida pela profunda mistura de gêneros se sobrepondo em ritmo vertiginoso – o terror, o suspense, a comédia, o drama, a ficção científica. O projeto por ser lido enquanto narrativa literal, ou seja, a presença de seres invasores que se apoderam do corpo dessa mulher, controlando seus pensamentos e os sons que emite. Ele também pode ser enxergado pelas metáforas diversas, desde a opressão masculina (o namorado obsessivo que sempre retorna para controlá-la), até a emancipação sexual de Inés (a figura recorrente da cobra e da pornografia). Talvez o roteiro não se passe de uma intricada metáfora sobre a perda do ente querido através de fantasmas frequentando a rotina de Inés na suposta intenção de cuidar dela, impedindo-a de enfrentar o trauma que passou.

Esta multiplicidade de leituras pode constituir um elemento de sedução para alguns espectadores, e de rejeição para outros. Para quem espera a determinação de um caminho único rumo ao final – ou seja, que se desvende qual dessas possibilidades seria a “verdadeira” – restará a frustração de um desfecho tão potente quanto ambíguo. Não estamos no terreno dos blockbusters hollywoodianos que convidam o espectador a um jogo de adivinhações até receber a resposta correta. Não existe resposta correta. A possibilidade de navegar entre o real e o imaginário, entre a trama que se leva a sério (o permanente clima de suspense) ou que se ridiculariza (o aceno ao humor absurdo, ao trash) lança o público numa atmosfera densa e indefinida, devido ao aprofundamento gradual das metáforas conduzindo a jovem mulher ao limite da explosão. Imagine Alice entrando no país das maravilhas, e a cada passo que percorre, descobrindo cenários ainda mais sinistros e herméticos.

Isso não significa que El Prófugo esteja aberto a qualquer interpretação, ou que se preste à aleatoriedade. A diretora e roteirista Natalia Meta sabe muito bem os caminhos distintos que pretende insinuar, tratando de borrar os limites entre eles – mas ainda assim, conduzindo as sensações de seu espectador através do ponto de vista indefinido de Inés. Ela acredita realmente estar possuída ou perseguida por algo? Ela estaria vendo de fato o ex-namorado (Daniel Hendler)? Por que o novo rapaz (Nahuel Pérez Biscayart) aparece apenas para ela, quando está sozinha, e com que finalidade a mãe ausente (Cecilia Roth) teria aparecido em sua casa? Não nos encontramos no terreno da ausência de respostas, e sim na multiplicidade das mesmas. A prova da recusa da diretora pelos caminhos convencionais do cinema de gênero se encontrará no final quando, ao invés de optar pela óbvia saída anunciada, privilegia uma alternativa absurda, tragicômica, e contrária ao que se considera, habitualmente, como desfecho aceitável dentro do cinema fantástico.

No papel principal, Érica Rivas comprova mais uma vez o talento para a composição que passa do natural ao absurdo, no mesmo equilíbrio de humor e sangue que constituiu a fama de sua catártica personagem em Relatos Selvagens (2014). Talvez o novo filme constitua, de fato, um relato selvagem individual e estendido, com o importante diferencial de poder se passar inteiramente na cabeça da mulher traumatizada – uma das possibilidades oferecidas é de que o invasor corresponda a uma sublimação do medo feminino, existindo apenas em sua mente doentia. A atriz desempenha bem tanto as cenas voluntariamente constrangedoras no início (o humor exagerado dos momentos na caverna ou no karaokê) quanto os instantes naturalistas no coral, passando pelas composições almodovarianas na cabine de dublagem de filmes eróticos japoneses. Através de diversos gêneros, Rivas sustenta a força no olhar e uma espécie de determinação que torna impossível separar a loucura da obstinação/razão. Ao seu lado, os demais personagens funcionam como provocações, estímulos constantes para levá-la ao clímax/orgasmo.

Natalia Meta faz questão de situar este conto psicanalítico dentro de uma atmosfera plausível: as vozes estranhas que saem de sua boca podem ser explicadas pela teoria de um livro, a pulsação eletromagnética emanando de Inés também corresponde a uma pequena anomalia justificável. A diretora fornece contextos absurdos enquanto nos dizer “Pode ser verdade, acredite em mim”, para então lançar situações verossímeis e nos dizer “Quem garante que tudo isso está acontecendo de fato?”. El Prófugo constitui um exercício de manipulação da linguagem cinematográfica e da ambientação narrativa, porém sem a habitual esperteza de diretores que desejam estar um passo à frente de seus espectadores, para oferecerem uma revelação esclarecedora no final. Meta acredita na vontade do público em se perder, como se nos convidasse a um labirinto sem saída. Esta é a beleza do cinema que ainda aposta num público capaz de recusar esclarecimentos e conduções didáticas, desejando apenas uma elaboração sugestiva que o deixe pensando após a sessão. Cada um poderá projetar seus medos e traumas na história de Inés, e talvez esta seja a beleza de um projeto tão perverso.

Filme visto no 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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