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Sinopse

Após testemunhar a morte da esposa idosa, um homem passa a ser atormentado por imagens dela. Uma pessoa conhecida lança a ideia que perturbará seus dias: e se a tragédia não tiver sido um mero acidente?

Crítica

A própria existência de O Tango do Viúvo e seu Espelho Deformador nas salas de cinema constitui uma curiosidade: o chileno Raúl Ruiz preparou seu primeiro longa-metragem em 1967, no entanto, como ocorreu a diversos projetos do cineasta, enfrentou problemas e não pôde conclui-lo. Em especial, ele não teve condições de finalizar o som, que se perdeu após mais de cinco décadas. Quando engavetou as imagens mudas, o diretor avisou que “caberia ao futuro finalizá-las”. Ora, coube à cineasta e viúva de Ruiz, Valeria Sarmiento, completar o projeto. Sem possuir o roteiro em mãos, ela recorreu a indivíduos surdos, especializados em leitura labial, para reconstruir os diálogos claramente pronunciados em tela. Quanto aos sons impossíveis de distinguir (quando os personagens estão de costas ou fora de quadro, por exemplo), escreveu-se diálogos novos que pudessem completar o sentido da trama.

Constrói-se ao mesmo tempo um trabalho de reconstrução e de criação, uma obra de respeito ao original e uma obra profana, no sentido de distorcê-la e acrescentar elementos que jamais existiriam antes. O Tango do Viúvo e seu Espelho Deformador não constitui nem a versão exata de Ruiz, nem uma obra puramente de Sarmiento; não se trata de um filme nem dos anos 1960, nem uma obra de 2020. A conclusão do longa-metragem experimental, com apenas 70 minutos de duração, constitui uma interessante afronta à noção tradicional de autoria e de cooperação no cinema. Por mais que Sarmiento não busque deliberadamente trair a narrativa original – ela não inclui elementos contemporâneos como celulares ou tecnologia atual, por exemplo – a cineasta inegavelmente introduz uma forma de pensamento que não condiz com a estética de mais de cinquenta anos atrás. Neste embate, a colagem assume suas arestas e seu aspecto inacabado, originando o elemento mais interessante do filme, que talvez nem parecesse tão vigoroso em sua concepção original.

Esteticamente, o resultado imprime alguns elementos que os brasileiros identificariam mais claramente com o Cinema Novo e o Cinema Marginal, ou talvez com as últimas obras de Glauber Rocha. A câmera na mão bastante fluida e a janela próxima do quadrado trazem tal despojamento na composição que o diretor propõe uma série de enquadramentos distintos dentro de um único plano. Enquanto os personagens conversam, a imagem desliza de um rosto ao outro, aproxima-se de uma sombra, afasta-se, gira dentro do cômodo, enquadra duas pessoas em posições distintas. A coreografia jamais soa aleatória, condicionando-se ao ritmo das falas e das movimentações de personagens. Existe uma potência e uma forma de enquadrar típica das vanguardas latino-americanas dos anos 1960 e 1970, algo que soa distante do cinema contemporâneo. A câmera se cola tanto perto dos rostos caminhando na rua que parece enfrentá-los, rompendo tanto com a impressão de distanciamento quanto com o realismo elegante que dominaria o circuito “de arte” poucos anos mais tarde.

Em termos de narrativa, O Tango do Viúvo e seu Espelho Deformador constitui ao mesmo tempo uma grande ousadia e uma traquinagem juvenil. Após uma primeira metade confrontando o viúvo (Rubén Sotoconil) à vida solitária, lavando as próprias roupas e reclamando da vida, a montagem interrompe a narrativa e reprisa exatamente as mesmas cenas, de trás para frente. Os personagens passam a caminhar ao contrário, as falas (que já constituem, por si só, dublagens com atores contemporâneos) tornam-se distorcidas como nos habituais discos tocados ao contrário. O espectador passa a rever imagens “sem sentido”, ou talvez seja melhor dizer, com seu sentido alterado, ridicularizado pelo efeito cômico, e desprendido da linearidade inicial. O “espelho” do título constitui menos um efeito literal ou prático da imagem do que um efeito de montagem. As cenas espelham-se a si mesmas, de modo que o discreto surrealismo da primeira metade – uma peruca desloca-se sozinha pelo chão da casa – torna-se um exercício beirando a abstração na segunda parte. Ruiz afasta-se progressivamente da narrativa para buscar o cinema enquanto matéria-prima.

Um elemento particularmente interessante neste jogo de ressignificações se encontra nos efeitos analógicos. Isso se justifica pela filmagem nos anos 1960 e pelos escassos recursos de então jovem cineasta, mas também cria um contraste interessante com a noção de experimentalismo do século XXI, tão atrelada às manipulações digitais. Ruiz e Sarmiento trabalham com imagens de ponta cabeça, sequências repetidas, sons sem referente e sem conexão com a trama. Instaura-se progressivamente uma noção de pesadelo, de perda de orientação, o que talvez se relacione com o trauma do viúvo, ou corresponda apenas a uma negação do diretor em relação ao cinema clássico-narrativo. O projeto pode não constituir uma distorção inovadora da linguagem cinematográfica, tampouco traz uma leitura particularmente profunda sobre a crise que o Chile atravessava na época, mas também pode ser interpretada – de modo exagerado ou sintomático, quem sabe – como metáfora para a perda de sentido na época que culminaria no golpe de 1973. Resta uma conexão involuntária, e por isso mesmo, profundamente interessante, entre duas formas de pensar cinema, em duas épocas totalmente distintas.

Filme visto no 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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