Crítica
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Crítica
Há um desconforto que nunca chega a ficar totalmente esclarecido durante o desenrolar da narrativa de El Visitante, longa escrito e dirigido pelo boliviano Martín Boulocq (premiado no Festival de Guadalajara por seu trabalho anterior, Eugenia, 2017). Esse descompasso, que vai se acentuando gradativamente – porém, sem exageros ou discursos que marquem tal evolução, optando-se por um aumento de tensão quase natural, do qual pouco se percebe a progressão, apenas quando não há mais o que possa ser feito a respeito – já está estampado no título escolhido. O visitante em questão é Humberto (Enrique Araoz, em interpretação direta e comedida, permeando momentos de conflito sem, no entanto, ultrapassá-los além de uma indignação que fica estampada em seu rosto, mas não expressa nos seus gestos), um homem que recém saiu da prisão. Ou seja, em tese, ele está de volta, e dessa vez para ficar. Sua condição passageira, porém, irá persegui-lo até não mais dela conseguir se dissociar, carregando-a consigo independente dos esforços em contrário. E está nessa admissão de impossibilidades a força insuspeita deste filme feliz em apontar a desgraça silenciosa que desenha, sem fazer dela, no entanto, um panfleto didático ou meramente gratuito.
Humberto quer retomar sua situação de onde parou – ou o mais próximo disso, se assim lhe parecer viável. As pontes com esse passado não muito distante, no entanto, não serão facilmente reconstruídas – quando muito retomadas. Ao chegar na casa da família, o portão está fechado, mas bastará pular o muro para que o cachorro o reconheça e ele possa se sentir, mais uma vez, num ambiente seu. A mãe demonstrará satisfação ao reencontrá-lo, mas até esta alegria tem limites: trata-se de uma mulher vivida, que por muito já passou, que conhece bem o filho que tem e não se deixará levar por falsas promessas. Há, por outro lado, a vontade de acreditar na mudança, de fazer apostas altas, independente do risco assumido, desde que se vislumbre lá adiante uma mínima possibilidade de felicidade. Além de olhar para onde veio, este homem precisa também se conectar com a herança que deixará. E esta é a filha adolescente, criada pelos avós maternos. O que aconteceu com essa mulher, por qual razão os sogros o recebem com tantas reticências, e como o vê esta menina, que pouco o conhece, ao mesmo tempo em que se mostra curiosa pela presença dele?
Estas são perguntas que Boulocq não tem pressa em responder – algumas delas, aliás, sequer serão esclarecidas. O que lhe interessa, acima de um ajuste de fatos e consequências, são as impressões que estes personagens provocam uns nos outros e as marcas que deixam pelo caminho por onde transitam. Mais do que um mero acerto de contas familiar, há outro elemento de forte influência que aqui está no centro do debate: a religião. Humberto não está particularmente interessado nessa questão, mas sabe que a todos ao seu redor ela é de fundamental importância, e por isso a respeita, quando não por ela também se deixa levar. Carlos (Cesar Troncoso, excelente no afago e na violência) e Elisabeth (Mirella Pascual, que com um olhar diz tudo o que precisa ser dito) não veem a volta ao genro com muito entusiasmo. Até porque, temem pelo que pode acontecer com Aleida (a jovem Svet Mena). Como se o pai fosse a má influência, e não eles, pastores pentecostais donos de uma visão restrita sobre como os outros devem se comportar, desde que, é claro, esses mesmos deveres a eles não se apliquem.
Sim, pois assim como a mãe de Humberto tem sua fé e dela vive e teme, agindo na sua humildade diante dos padrões que se podem esperar de qualquer pessoa minimamente religiosa – e ciente da posição que ocupa enquanto crente, e não como pastor – ao casal oposto há uma ostentação e uma autoridade quase inconteste, que será enfrentada apenas por este homem não disposto ao embate, mas a fazer valer também os seus direitos (até que estes, por fim, lhe sejam negados). Se agir conforme as regras, talvez possa da filha se aproximar. Caso contrário, até uma mera visita ocasional poderá virar assunto de justiça. Mas ele não é bobo, e na quietude de quem muito vê, mas pouco se coloca disposto a atrair as atenções, tenta fazer uso destes meios ao seu alcance para melhorar a estrutura que busca formar e oferecer. Num caso como este, não basta ser pai: é preciso mais, deve-se agir e parecer como um, tendo também as posses suficientes para se manter como tal. Mas quando o plano que estabelece entra em rota de conflito com o negócio milionário da família da qual uma vez já fez parte, mas que agora tanto se esforça para dele se afastar, tudo o que estará fazendo é dar-lhes motivos para consolidar essa separação. E de longe, lhe caberá apenas observar, não mais como membro atuante, mas, sim, como alguém que chegou sem, no entanto, encontrar espaço para ficar.
Ernesto Araoz tem experiência como cantor de ópera, e carrega essa habilidade para seu personagem – o primeiro trabalho que Humberto arruma é cantando “Ave Maria” em funerais. Essa estranha combinação – alguém que passou uma temporada por trás das grades ao mesmo tempo em que é capaz de fazer de sua voz um elemento de encanto e fascínio – cabe bem a uma figura trágica, que luta com as armas que encontra frente às injustiças que se apresentam, como que marcado pelo pouco que recebeu e o muito que pensa lhe ser devido. Estas figuras, nenhuma santa, mas com diferentes doses de vilania em seus atos, formam um conjunto absurdamente humano, fácil de ser identificado e, principalmente, compreendido. Ao condutor, uma vez levantado cenário tão intrigante, reconhece-se o mérito de permitir uma conclusão em aberto, ainda que essa fique no meio termo entre a falta de um desfecho à altura e a permissão de acesso a múltiplos caminhos, delegando à audiência a escolha por qual destes atalhos seguir.
Filme visto durante o 1º Bonito CineSur – Festival de Cinema Sul-Americano de Bonito
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