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Sinopse

Bia está há 20 anos em coma, desde o dia do nascimento de sua filha. E ela acorda subitamente depois dessas duas décadas. Enquanto reaprende a andar, falar e se relacionar, testemunha a filha adulta se adaptando à nova realidade.  

Crítica

Andréa Beltrão não precisa provar nada a ninguém. Afinal, há muito tempo tem garantido um lugar especial entre as melhores intérpretes femininas contemporâneas do Brasil. Dona de dois candangos do Festival de Brasília, um Grande Otelo no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro e indicações ao Emmy Internacional e ao Prêmio Guarani, consegue transformar obras que falharam em encontrar seu público, como Verlust (2020) ou Albatroz (2019), ao mesmo tempo em que torna imprescindíveis trabalhos que deixaram sua marca, como Pequeno Dicionário Amoroso (1997) ou Hebe: A Estrela do Brasil (2019). Porém, mesmo dona de um histórico de tamanho respeito, segue se desafiando, levando seu talento a um passo além de uma suposta zona de conforto que a muitos teria recebido de braços abertos. Em Ela e Eu, de Gustavo Rosa de Moura, a atriz mostra mais uma vez que não por acaso ocupa a posição de destaque que hoje lhe é destinada, ao mesmo tempo em que abre espaço para coadjuvantes importantes que oferecem ao conjunto um brilho ainda mais forte.

O drama não demora a ser posto em cena, e ao espectador cabe, ao menos nos instantes iniciais, se preocupar mais com o desenrolar dos eventos do que com uma análise mais profunda dos impactos desses nos personagens. Essa reflexão, porém, não é ignorada. Apenas está deslocada para um segundo momento, se não de igual, talvez até mesmo com maior importância. O instante mais importante da vida de Bia (Beltrão) é também aquele que irá definir sua existência a partir dali: na hora do parto de sua filha, acabará entrando em coma, e assim permanecerá por mais de duas décadas. Carol (Lara Tremouroux, de Medusa, 2021) passou a infância e a adolescência sem conhecer aquela mulher que a colocou no mundo, por mais próxima que essa tenha permanecido durante todo esse tempo. Nem viva, nem morta, Bia permaneceu no quarto de hóspedes, sendo cuidada – alimentada, tratada, preservada – com todas as atenções. Aos poucos, porém, foi deixando de ser quem sempre foi para aqueles ao seu redor. Virou um objeto, uma planta, algo do qual se tem ciência, mas cujas exigências são limitadas.

Quando a esperança há muito havia partido, Bia retorna. O processo é simples, quase imperceptível, e mesmo assim, capaz de fazer toda a diferença. Num abrir de olhos, a mulher, mãe e esposa está de volta, mesmo que tenha deixado para trás todas essas credenciais. Carlos (Eduardo Moscovis, em composição sensível, ainda que discreta) não é mais seu marido – agora está casado com Renata (Mariana Lima, oferecendo uma postura repleta de carinho e fúria), a nova “rainha do lar”, aquela que aceitou ocupar essa condição pouco convencional, imagina-se que muito em parte por também compartilhar dessa falta de expectativas contrárias, por não conseguir imaginar que, talvez um dia, esse cenário fosse afetado. Porém, o improvável aconteceu. Bia acordou. E mesmo sem se declarar disposta a ocupar aquilo que era seu ao partir, também não tem para onde ir senão permanecer no lugar que é seu por direito.

Mais importante do que ser esposa, porém, é se redescobrir mãe e mulher. Bia voltou a ser criança, pior do que uma, pois não está liberta de referências ou especulações. Nada conhece, ao mesmo tempo em que a bagagem acumulada por uma existência prévia está por ali, bastando apenas ser encontrada. Moura e Beltrão, diretor e protagonista, dividem também a autoria do roteiro (escrito em parceria ainda com Leonardo Levis, de O Filho Eterno, 2016), e juntos vão compondo uma jornada de revelações, revisitações e tomada de consciência, não tanto de surpresas ou reviravoltas. Não há pressa, e o tempo de cada um se faz ser respeitado. Tanto o de Bia, a que vê com novos olhos aquilo que já conheceu, mas desaprendeu, como Carol, que precisa reprogramar suas percepções a respeito de alguém que apenas imaginou, mas agora se mostra pela primeira vez como sempre foi, tanto capaz de erros como de acertos.

As nuances desses relacionamentos, potencializados tanto em cenas de forte teor emocional (como o jantar em família) como em outras mais discretas, mas também donas de grande potencial (como a saída às compras, quando acompanhada pela cuidadora defendida com um humor particular, ainda que restrito, por Karine Teles), oferecem o melhor de Ela e Eu a um público atento, interessado por personagens absolutamente comuns, ainda que únicos em suas particularidades. Afinal, está nessa suposta simplicidade, capaz de abrigar mundos inteiros em revolução, que reside o maior valor de um filme que muito entrega sem esforço ou maiores dilemas, mas ainda assim capaz de envolver e transformar cada um a seu modo, independente do lado da tela – ou da ficção – em que se encontre. Algo pequeno, até mesmo singelo, mas de efeitos gigantes e consequências inesperadas. Bastando para isso, enfim, se abrir – e permanecer assim, por mais contrárias que sejam as pedras encontradas pelo caminho.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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