Crítica

Em determinado momento no início de Ela Vai, Bettie, a protagonista defendida com segurança por Catherine Deneuve, após ter saído de casa e estar há mais de um dia sem dar notícias, recebe dois recados – um da mãe, outro da filha – à sua procura. E o que faz? Liga para uma colega de trabalho, para saber se está tudo em ordem na sua ausência. Tal atitude tenta exemplificar o percurso de transformação que a personagem irá trilhar durante as quase duas horas de duração do filme: de pessoa prática e objetiva, irá aos poucos deixar a emoção e os sentimentos há muito resguardados aparecerem, até o momento em que irá tomar conta de suas próximas decisões e, finalmente, fazer com que sua vida entre nos eixos.

Bettie já passou há tempo dos 60 anos, mas ainda mora com a mãe na mesma casa onde nasceu. Para lá ela voltou após o falecimento do marido, e hoje é amante do homem que foi traído pela esposa com o antigo companheiro dela. Se a confusão parece intencional nos primeiros minutos da trama proposta pela diretora e roteirista Emmanuelle Bercot (responsável por um dos segmentos de Os Infiéis, 2012), isso logo é descartado, como uma figura de linguagem que tem sua utilidade inicial, mas com serventia limitada. Pois, assim como adianta o título, essa mulher não está mais olhando para o passado e remoendo feitos e acasos do destino. A partir de agora, irá olhar para frente e ir adiante em busca de uma realização que pode vir a ser muito mais simples do que o imaginado.

Dona de um restaurante à beira da falência, Bettie foi a última a saber que havia sido deixada pelo ex-namorado. Sem coragem de encarar a frustração no trabalho e o desencanto amoroso, entra em seu carro e sai sem rumo pelo interior francês, parando após muito rodar em um bar qualquer. Lá se diverte com outras mulheres igualmente desiludidas, até que um rapaz muitos anos mais novo se encanta por ela, a ponto de acabarem juntos em um quarto de hotel. “Você deve ter sido muito linda quando jovem”, afirma ele, como se fosse um elogio. Tal comentário é recebido com frieza, tendo como único efeito lembrá-la de quem é e onde está. Assim, decidida a acabar com aqueles instantes de devaneio, parte. Mas voltar para casa nunca é tão fácil quanto partir.

Esse filme nós já vimos, e inúmeras vezes. Pois, apesar do cenário construído no princípio da ação, Ela Vai logo cai no convencional. E isso se dá quando a personagem principal recebe um chamado da filha, com quem há anos não fala, pedindo para buscar o neto e levá-lo até o avô paterno, que está no outro lado da França, pois precisa viajar à trabalho. Assim, temos um legítimo road movie, com a senhora que se recusa a amadurecer – e uma passagem providencial por um encontro de antigas misses reforça essa condição – e um jovem que precisou crescer antes do tempo. Juntos, irão se descobrir um no outro e, acima de tudo, encontrarem um caminho a seguir com suas histórias.

Ela Vai é um filme ao qual se assiste com tranquilidade, sem muitos percalços, mas também com atenção moderada. O destaque, acima de tudo, é a atuação de Catherine Deneuve, merecidamente indicada ao César como Melhor Atriz por esta performance. Ela consegue transmitir com exatidão a complexidade emocional dessa mulher que precisa encontrar-se consigo própria para conseguir, finalmente, olhar para os lados e aceitar os seus como são. A mensagem é bonita e encontra ressonância em grande parte dos espectadores de dramas deste tipo, mas o tom convencional da narrativa e o final em que tudo se encaixa abusando das coincidências prejudicam uma avaliação mais positiva. Vale pela curiosidade, mas quanto menores forem as expectativas, melhor.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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