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Crítica


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Sinopse

A passagem do médico nazista Josef Mengele pela América do Sul. Teorias da conspiração dão conta de que ele viveu num bairro paulista, adotando a identidade falsa de Pedro Hochbichler.

Crítica

Este documentário aparenta ter nascido da vontade de abordar um tema em particular. A afirmação pode soar óbvia, mas não é: tanto ficções quanto documentários podem decorrer de motivações muito distintas. O(a) cineasta pode ser motivado(a) pela busca de retratar uma sensação, de trazer um debate, de elaborar determinadas imagens, de buscar respostas às suas perguntas. O diretor Marcelo Felipe Sampaio se interessa pela viagem ao Brasil de Josef Mengele, médico nazista que trabalhou com Adolf Hitler – a priori, era sobre isso que o cineasta queria falar. A noção de “falar” sobre determinado tópico é precisa: o cineasta se interessa sobretudo pelo registro oral, pelos depoimentos e pelo valor da narração, expondo didaticamente as controvérsias envolvendo a estadia do oficial eugenista pela América do Sul. Só então teria nascido a reflexão a respeito da melhor maneira abordar este episódio histórico: com quais imagens? Qual ritmo? A partir de qual ponto de vista? Ao que tudo indica, Eldorado: Mengele Vivo ou Morto? (2019) se iniciou com uma série de entrevistas, para então surgir a estrutura narrativa reunindo o material coletado.

Esta escolha não é incomum: são inúmeros os casos de documentaristas que, apaixonados por um sujeito, recolhem o máximo de imagens e dados possível sobre seu objeto de estudo, para então resolverem na montagem a melhor maneira de colá-los. Contentam-se então com as talking heads, as cabeças de especialistas discursando sobre o conflito central, em alternância com imagens de arquivo. Existem alguns problemas essenciais no contentamento com esta forma: primeiro, ele torna a imagem refém do som, ou ainda meramente ilustrativa em relação à primazia da fala. Este documentário trata a imagem como suporte referencial da banda sonora: quando um testemunho fala sobre Mengele, a montagem oferece uma imagem do médico. Quando citam as famílias que o esconderam no Brasil, vemos fotos dos familiares. Uma menção a Diadema expõe o nome da cidade no mapa; uma referência a São Bernardo do Campo traz imagens da Avenida Anchieta, com foco no galpão da Volkswagen. Fala-se na Argentina, e entram cenas de tango; fala-se em outras cidades e surgem tomadas abertas de pessoas caminhando pelas ruas. Não há qualquer forma de enriquecimento da imagem em relação ao som, tampouco uma fricção entre ambos. As cenas escolhidas possuem a modesta função de rechear o filme, impedindo que o rosto dos entrevistados se estenda demais em cena.

Segundo, esta estrutura exige uma potente articulação da montagem para que o conteúdo não resulte redundante nem entediante. Ora, Eldorado: Mengele Vivo ou Morto? sofre com a falta de conteúdo audiovisual para o filme – e nada é mais triste do que assistir a um projeto que não possui imagens suficientes para justificar sua duração. Existe bastante pesquisa e conhecimento sobre o tema, sem dúvida. São convidados peritos de diversas áreas, capazes de falar com propriedade a respeito do período e dos fatos específicos relacionados ao protagonista. Os testemunhos são claros, e não restam dúvidas quanto ao interesse de todos pelo tópico. No entanto, a montagem reflete a quantidade limitada de materiais de arquivo, sobretudo nas fotos do próprio médico. Repetir imagens dentro de um filme basta para soar no espectador um alerta vermelho, mas repetir cerca de vinte vezes a mesma foto de Mengele, num plano de detalhe dos olhos de aparência maléfica, beira o humor involuntário. Mesmo as banais imagens das cidades se repetem, assim como as fotografias do suposto Mengele diante de uma casa, as imagens de crânios e do mafioso Buscetta.

O terço final do projeto é reservado quase inteiramente a análises de ossos e crânios, visando determinar se o esqueleto encontrado corresponde ao médico nazista ou não. Entram em cena filmagens de palestras (com a câmera captando a luz estourada sobre uma tela com simples slides) e dezenas de passagens sobre formatos de crânios, que provavelmente seriam encurtadas em outros projetos. É possível que a pós-produção tenha esticado estes momentos até atingir a duração mínima de um longa-metragem, o que prejudica a fluidez do resultado. As características técnicas são bastante falhas: os entrevistados são filmados sob forte luz de um refletor diretamente em seus rostos (no caso de Ben Abraham, os óculos refletem a luz e revelam a equipe espelhada nas lentes); a temperatura das cores e a intensidade da luz varia bastante em cada fala; o tratamento do som é desigual em volume e qualidade da captação; a montagem tem como única opção estética os rápidos flashes alternados por fades. A narração em voz empostada demais, repetindo os letreiros, reforça o teor didático, sobretudo quando lê as curiosas divisões em capítulos que não se justificam enquanto tais: “Os ossos falam”, “A fratura pélvica”, “A osteomielite”. Os letreiros inclusive erram na grafia do escritor Ben Abraham rumo ao final.

De modo geral, o filme é prejudicado por colocar o conteúdo muito acima da forma. O roteiro é confuso (o começo em tom de denúncia-espetáculo - “A farsa”! – para citar John F. Kennedy e só então dizer quem era Mengele), o cuidado técnico é mínimo. O documentário busca se legimitar pelo valor de seu raro objeto de estudo, no entanto, temas não possuem valor em si, dependendo da forma como são representados: aí nasce a mise en scène, o conceito de cinema. Apenas no final, durante alguns minutos, um entrevistado cita a dor das vítimas de Mengele e a maneira como a vivência pessoal as impediria de fazer um julgamento sobre o médico nazista. Este é o primeiro momento de empatia com as vítimas dentro de um filme tão preocupado em enumerar fatos e listar provas. Pouco importa saber o formato do lóbulo da orelha de Mengele se não conhecemos a fundo o papel do nazismo, sua influência na América Latina. Precisaríamos entender a imigração na época, a impunidade dos criminosos, as anistias, o possível espelhamento do caso de Mengele em outros semelhantes. De que maneira este episódio se relaciona com a política de hoje, com o papel da memória, com o revisionismo atual? Da maneira como foi estruturado, o documentário serve como tese de história ou antropologia visual. No entanto, disponível junto de outros filmes, numa plataforma de filmes, em formato artístico-cinematográfico, precisa ser julgado pela utilização da linguagem cinematográfica, e não pelas boas intenções nem pela qualidade do trabalho prévio de pesquisa.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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