Sinopse
O adolescente Gabriel passa os dias sozinho na casa de férias da família, enquanto os pais e a irmã permanecem na cidade. Um dia, chegando de um encontro com os amigos, cumprimenta Dona Ida, a empregada doméstica, e vai dormir. Ao se levantar, descobre que a mulher está morta. Gabriel é o principal suspeito.
Crítica
A imagem inicial resume a abordagem de Êles (2018). Um adolescente chega em casa de manhã, cambaleando, enquanto a empregada doméstica varre a entrada da propriedade. A câmera não se encontra junto ao garoto, nem à senhora idosa, e sim do outro lado da rua. Imóvel, o enquadramento segue o ritmo de um enorme portão que desliza lateralmente, emitindo um barulho percebido como natural. O ritmo do plano é determinado pelo objeto, ao invés dos gestos de um e de outra. Assim, o diretor e roteirista Roberto Burd sublinha o ponto de vista externo, frio e fatual, observando as ações pelo prisma de quem se encontra literalmente fora da casa, alheio à rotina familiar. Podendo acompanhar a trajetória pelo ponto de vista de Gabriel (João Pedro Prates), o jovem rico, filho de uma juíza e um dentista, e tendo o imóvel inteiro à sua disposição durante as férias, ou então pela perspectiva de Dona Ida (Teca Pereira), mulher negra, pobre e em período de dificuldade, a direção prefere se ausentar, situando-se a meia distância entre ambos. Esta aparência de isenção se torna determinante tanto para as qualidades quanto para os aspectos menos valorosos do projeto.
Por um lado, o curta-metragem desenha com eficácia o contexto de uma família burguesa dotada de muitos recursos e pouco afeto. Ao se deparar com a empregada doméstica morta, e comunicar a tragédia aos pais, o garoto produz uma resposta desafetada destes adultos ocupados com suas atividades, pedindo que lide com o óbito sozinho. O cineasta toma a precaução de fugir à vilania caricatural, preferindo uma crônica do descaso com a classe trabalhadora. Em certa medida, remete à família abastada de O Vídeo de Benny (1992), de Michael Haneke, para quem a morte alheia significava mero problema a resolver o quanto antes. Nenhum personagem demonstra qualquer pesar pela mulher considerada “quase parte da família” - nem Gabriel, incomodado com os procedimentos funerários, a presença dos vizinhos e as perguntas dos delegados. Em sua metade dedicada à elite gaúcha, Burd demonstra um ponto de vista crítico à falta de humanidade destas pessoas, porém sem romper com elas. Nota-se o evidente carinho com o menino sozinho em casa, respondendo legalmente a questões incompatíveis com a idade. O filme enxerga neste episódio uma relação crônica de desigualdades de classe, em oposição a um caso excepcional, digno de ganhar as manchetes. A vida segue inalterada para todas as pessoas no dia seguinte.
Por outro lado, lamenta-se que uma descrição tão cáustica da família rica não seja acompanhada de igual atenção à vítima. Êles aponta o dedo ao desdém pela empregada doméstica, embora faça pouco esforço para se dissociar deste olhar objetificante. Mesmo que a conclusão dedique, enfim, algumas cenas à mulher, o roteiro nunca mergulha em sua subjetividade, aludindo ao passado de exploração, de miséria, ou ao estado de fragilidade psíquica em que se encontra. Desconhecemos suas dores, desejos, a relação mantida com sua família e com os patrões. Ora, é delicado criticar a desatenção com a trabalhadora negra e pobre sem transformá-la em protagonista nem deixá-la controlar o discurso e o ponto de vista, ainda que na posição de coadjuvante. Em termos de discurso, o curta-metragem funciona em sua constatação do racismo estrutural, porém falha ao propor, artisticamente, uma maneira de enfrentá-lo. Há um abismo entre representar uma família indiferente e tornar, a si próprio, indiferente ao conflito – e esta era a separação mais importante a efetuar: o distanciamento do núcleo burguês para se posicionar junto à personagem desprivilegiada.
Da maneira como se constrói, o roteiro se encerra com a aparência de um “dia qualquer”: o retorno à casa, o portão automático, a rotina retomada. Nenhum culpado é apontado diante deste infortúnio – foi “culpa da fatalidade”, como diria um apático Charles Bovary. No entanto, são evidentes as pretensões políticas do diretor, interessado em efetuar uma crônica das violências de classe, tacitamente aceitas dentro de um sistema perverso e desigual. Metade do caminho é percorrida com sucesso: a observação irônica dos detentores do poder. Faltava outra metade, de igual importância: a clara identificação com Ida, e a generosidade em permitir que dominasse a narrativa. O pretenso equilíbrio, distante tanto do garoto quanto da empregada, deixando de tomar partidos para qualquer lado, constitui por si próprio uma atitude política condescendente com o mecanismo que pretende denunciar. É uma pena que tamanho controle dos enquadramentos, da duração dos planos e dos atores, dirigidos de maneira coesa e polida, não se aplique a um discurso mais incisivo social e politicamente.
Filme visto online no VI Cine Jardim: Festival Latino-Americano de Cinema de Belo Jardim, em agosto de 2021.
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