Crítica
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Sinopse
Michèle parece ser indestrutível. Chefe de uma importante empresa de jogos de videogame, ela tem a mesma atitude implacável nos relacionamentos amorosos e no trabalho. Depois de ser atacada em sua casa por um assaltante, Michèle tem a vida completamente mudada. Quando passa a seguir os rastros desse homem, ambos são arrastados para um jogo que pode, a qualquer momento, sair do controle.
Crítica
Ainda que seus maiores sucessos comerciais – RoboCop: O Policial do Futuro (1987) e O Vingador do Futuro (1990) – possam associá-lo, em uma análise rasa e precipitada, ao cinema de ação tipicamente masculino, as figuras femininas têm uma importância fundamental na obra do holandês Paul Verhoeven. Desde os primeiros trabalhos em sua terra natal, como Louca Paixão (1973) ou O Quarto Homem (1983), passando por grandes títulos de sua fase hollywoodiana, como Instinto Selvagem (1992) e Showgirls (1995), até o mais recente A Espiã (2006), as mulheres que assumem o comando das ações sempre povoaram o universo do diretor, no qual Elle, seu aguardado retorno às telas, já pode ser inserido no mais alto patamar de qualidade e expressividade.
Sem encontrar o mesmo espaço de décadas anteriores para seu estilo transgressor na conservadora indústria cinematográfica norte-americana, Verhoeven recorre ao mercado europeu, mais precisamente o francês, para realizar essa adaptação do livro Oh..., de Philippe Djian, tendo na parisiense Isabelle Huppert a protagonista perfeita para a história. No longa, a atriz vive Michèle Leblanc, executiva de uma renomada desenvolvedora de videogames que tem a aparente estabilidade de sua rotina alterada após ser violentada sexualmente dentro de sua própria casa. Sem relatar o ocorrido à polícia e mantendo uma atitude quase inabalável a respeito, ela passa a conviver com pensamentos e desejos cada vez mais conflitantes, enquanto a presença de seu misterioso agressor continua a ameaçá-la.
O choque da proposta de Verhoeven é imediato, nos negando a imagem na cena inaugural quando, com a tela preta, ouvimos Huppert durante o estupro sem que possamos distinguir desespero e prazer do sentimento contido em seus gritos. Quando a ação, por fim, é revelada, o cineasta o faz através do olhar fixo do gato de Michèle que, assim como o espectador, acompanha impotente o ato de agressão. A violência é, para o cineasta, uma força primitiva e inerente à natureza – o pássaro que colide com a porta de vidro, sendo abocanhado pelo felino de estimação da protagonista –, uma representação de verdade e de libertação. E é isso que o estupro desencadeia em Michèle. Não que antes ela se mostrasse uma mulher submissa, ou que encare uma jornada de metamorfose, mas seus instintos e a consciência de seu próprio poder são potencializados pelo traumático evento.
Isso fica evidente em seu ambiente de trabalho, o mundo tradicionalmente machista dos games, onde se impõe ao lado da sócia (Anne Consigny) frente a uma equipe composta quase exclusivamente por homens, criando produtos que refletem justamente a violência intrínseca à sociedade cara a Verhoeven. Porém, além dessa reafirmação de empoderamento, interessa ao diretor examinar o viés sexual do trauma, o despertar gradativo de desejos até então desconhecidos ou adormecidos. Esse interesse faz com que Elle caminhe numa linha moral tênue, que poderia ser tratada, dentro de uma visão extremamente simplista, como misógina e condenável por abordar o estupro paralelamente ao prazer. O que seria completamente equivocado, já que a obra se mostra muito mais complexa do que essa perspectiva polemista.
Tal complexidade advém não só do fato de as implicações psicológicas de casos como o da personagem serem as mais diversas na vida real – incluindo a suposta impassibilidade, que aqui também carrega um elemento particular ligado ao passado de Michèle e de seu pai – como também pelo fato do cinema de Verhoeven ser fundamentado sobre o conceito da farsa e da subversão de códigos – vide o que fez com a ficção científica e a política no satírico Tropas Estelares (1997). Isso explica a surpreendente quantidade de humor que povoa a narrativa, em um tom, obviamente, cínico e sarcástico. Os embates entre Michèle e a mãe (Judith Magre) ou com o filho (Jonas Bloquet), a grande quantidade de tipos coadjuvantes com suas falhas escancaradas, e os desencontros dos mesmos, agregam ao longa ares de tragicomédia sobre famílias disfuncionais.
Sendo assim, Verhoeven proporciona um momento de catarse para esses conflitos familiares ao reunir todos numa lavação de roupa suja generalizada na magistral sequência do jantar de Natal, com direito a flertes, traições, discussões, anúncio de casamento e até morte. O jogo do cineasta com as regras do cinema de gênero também segue, sustentando por algum tempo o mistério sobre a identidade do agressor sob uma atmosfera hitchcockiana. Esse segredo, no entanto, é exposto bem antes do desfecho e com impacto apenas moderado, já que, assim como a trama de vingança que se projetava no início, ele serve apenas como elemento complementar ao interesse principal do diretor pela trajetória de descoberta emocional de Michèle, transmitida com maestria por Huppert.
Pois é difícil imaginar outra atriz capaz de encarnar toda a ambiguidade da personagem, mesclando fetiche, medo, ódio, melancolia e uma sexualidade latente e invulgar – a cena com o vizinho na ventania resume com precisão essa capacidade. E se sua imponente presença já bastaria para refutar qualquer teoria sobre o machismo do longa, Verhoeven deixa tudo mais explícito no modo como retrata os homens que cercam Michèle: o ex-marido inseguro e fracassado, o amante patético e infiel, o “namorado-objeto” da mãe, o filho dominado pela esposa, os empregados infantilizados. É o poder feminino que rege Elle, como não deixa nenhuma dúvida o belíssimo desfecho, no qual o realizador filma as amigas no cemitério, rindo sobre as tragédias e desentendimentos agora enterrados, compondo uma imagem de sororidade emblemática.
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