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Sinopse

Jongsu é um entregador que, no meio de um trabalho, reencontra Haemi, uma garota que já morou em sua vizinhança. A moça pergunta se ele poderia cuidar do seu gato enquanto ela estiver na África. Na volta, Haemi apresenta Jongsu a Ben, um jovem enigmático que ela conheceu durante a viagem. Um dia, Ben conta a Jongsu sobre seu hobby mais incomum.

Crítica

A escolha por sustentar o elemento instigante por meio das fantasias geradas pela dúvida, ao invés de se ancorar no contentamento de soluções concretas para os enigmas que oferece, é um dos principais fatores que tornam Em Chamas, primeiro longa realizado pelo sul-coreano Lee Chang-dong desde o belo Poesia (2010), tão fascinante. Tendo como base um conto do escritor japonês Haruki Murakami, o cineasta apresenta aqui uma verdadeira metamorfose de gêneros, através de uma trama que se inicia como romance de tintas dramáticas para, em determinado ponto, enveredar pelo terreno do suspense. Tal construção se dá de modo gradativo e com impecável sutileza, com Chang-dong utilizando praticamente toda a primeira metade das quase duas horas e meia de projeção para estabelecer personagens, motivações, dinâmicas de relações e temáticas secundárias até, de fato, mergulhar no labirinto dos mistérios levantados.

Assim, acompanhamos Jongsu (Yoo Ah-In), um jovem entregador introvertido e solitário que, durante uma de suas entregas, reencontra uma antiga vizinha dos tempos de infância, Haemi (Jeon Jong-seo), que logo lhe desperta a atração. Prestes a embarcar para a África, a garota pede a Jongsu que cuide de seu gato de estimação durante a viagem, tarefa que ele prontamente aceita. Ao retornar, contudo, Haemi surge acompanhada de Ben (Steven Yuen), um milionário que conhecera em sua passagem pelo Quênia. Inicia-se, então, uma espécie de triângulo amoroso cercado de dubiedades, pois, desde o princípio, algo de enigmático emana de Ben que, entre outras coisas, nunca revela o que faz para viver, afirmando simplesmente ser um “jogador”. Assim como o personagem, o diretor Chang-dong também joga o tempo todo, mais precisamente com o poder da sugestão, mantendo um senso de gravidade que envolve não apenas o comportamento de Ben, mas também o passado de Jongsu e Haemi.

Além dos segredos e da palpável tensão sexual, a dinâmica do trio carrega ainda outras questões, a principal delas sendo a do conflito de classes. O contraste entre a realidade humilde de Jongsu – filho de um criador de gado que se encontra preso e de uma mãe ausente – e Haemi – que vive em um minúsculo quarto alugado e também mantém pouco contato com a família – e a vida luxuosa de Ben, com seu carro importado, roupas de marca e apartamento de alto nível, é evidenciado por Chang-dong. Dessa forma, o interesse do misterioso homem, ainda que soe genuíno, tanto pela garota quanto pelo jovem entregador, não deixa de transparecer uma relação de poder, de domínio – vide a cena do bar em que Ben e seus amigos pedem a Haemi que reencene a dança da tribo africana para se deleitar com sua exposição ao ridículo.

Todas essas camadas de complexidade expostas na primeira parte do longa são emolduradas por um lirismo estético marcado pelas imagens crepusculares – o pôr do sol é motivo recorrente, como na belíssima sequência em que Haemi dança seminua no quintal da casa de Jongsu – e que se mantém, ainda que em chave levemente mais sombria, a partir da virada narrativa, quando Ben revela ao protagonista seu peculiar hobby. Tal revelação, bem como a ausência de Haemi, desperta o comportamento obsessivo de Jongsu, que passa a tentar solucionar o quebra-cabeça com as pequenas pistas deixadas por Ben e com suas próprias suposições. Nessa busca, Chang-dong joga seu protagonista, bem como o espectador, num mar de incertezas, no qual até mesmo a noção de realidade chega a ser colocada em cheque – o fato de Jongsu ser também um aspirante a escritor corrobora para isso.

A única certeza que Em Chamas oferece ao espectador é a de que, independentemente das soluções para seus enigmas serem dadas ou não, uma tragédia inevitável se impõe no futuro dos personagens. Um destino que os próprios envolvidos parecem antever e aceitar, como no breve momento em que o confronto corpo a corpo se transforma em um abraço durante o desfecho onde todo o acúmulo de sentimentos reprimidos – ciúme, inveja, frustração, desejo carnal e até mesmo um senso de justiça social – explode de forma visceral, num rompante de violência antes apenas sugerida. Com isso, Chang-dong não deixa de se filiar às jornadas de vingança tão recorrentes no cinema sul-coreano das últimas décadas, mas o faz de modo singular, se valendo de uma força metafórica inegável. Pois, traçando um paralelo com a definição dos tipos de “pessoas famintas” dada pelos habitantes do Deserto do Kalahari e explicada por Haemi, o cineasta não se contenta com a “pequena fome” – oferecer respostas definitivas – almejando sempre a “grande fome”: deixar com que as dúvidas despertem a imaginação e permaneçam ecoando tanto quanto o impacto do desesperado ato derradeiro. Um objetivo atingindo com maestria.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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