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Sinopse

Aos oito anos de idade, Tarik sofre um acidente automobilístico com sua família. O pai morre, a mãe permanece em coma no hospital e ele perde a memória. Enviado a um vilarejo para morar com seus avós, o pequeno desenvolve uma conexão com um burrinho da aldeia.

Crítica

É possível que a melhor maneira de abraçar este projeto seja enquanto teatro infantil. Ele remete às peças de fim de ano nas escolas, quando se convidam os pais e amigos para assistirem aos filhos interpretarem reis, rainhas, dragões ou árvores. Os textos costumam ensinar a valentia ou o poder da amizade, ou então divertem ao colocarem crianças no papel deslocado de adultos em peças clássicas. O teatro infantil amador nunca é avaliado pela qualidade técnica da luz e cenografia, tampouco pela interpretação das crianças. A função se torna retórica, civilizatória: a concretização do espetáculo constitui um mérito em si, por estabelecer o contato da nova geração com as artes, enquanto os pequenos exercitam a autoimagem, a oratória, a capacidade de imaginação. Enquanto esforço cinematográfico, Em Meus Sonhos (2020) constitui uma bela peça amadora a respeito de um garoto cujo pai morreu e a mãe está em coma, travando uma amizade inesperada com um burrinho igualmente órfão e um homem viúvo com debilidades intelectuais. As trajetórias seriam intrinsecamente conectadas pelo fato de terem perdido alguém em suas vidas.

“Como um filhote vai viver sem a sua mãe?”, perguntam os moradores do vilarejo não apenas uma, mas três vezes. Eles estão falando do animal, e por extensão, também do pequeno Tarik. Caso a analogia não tenha ficado suficientemente clara, eles explicitam a comparação entre o menino e o burro. Depois, explicam mais uma vez. O melodrama constitui uma dessas curiosas experiências de introdução à linguagem audiovisual, quando se apresenta metáforas simples a pessoas consideradas incapazes de compreenderem a mínima relação de montagem. As crianças são dotadas de um universo lúdico surpreendente, no entanto, o diretor Murat Çeri pressupõe que cada ação precisa ser duplicada entre som e imagem. Os personagens decidem fazer xixi, e então dizem: “Vou fazer xixi”. Um garoto lambuza o rosto na tinta, e os coleguinhas ao redor se exclamam: “Ele está lambuzando o rosto na tinta!”. Um homem age como louco, e todos gritam ao redor: “Louco!”. Pratica-se não apenas a repetição, que pauta toda a narrativa, mas também a função reincidente do audiovisual: o som deveria reproduzir o sentido da imagem, e vice-versa.

Caso brincasse de maneira despojada com a linguagem, investindo na fantasia, talvez o resultado se inserisse com mais facilidade na categoria do cinema infantil. No entanto, Em Meus Sonhos se conduz como um drama sério, confrontando-se a limitações de tom e produção. As crianças são uniformemente mal dirigidas: o despertar ofegante de Tarik após um pesadelo ou o choro diante do burro beiram o constrangimento pela pouca desenvoltura do ator mirim. O mesmo poderia ser dito dos colegas com quem o protagonista brinca durante incontáveis cenas, todas muito semelhantes, incapazes de produzirem qualquer efeito novo na trama. O espectador presencia muitos grupos de pessoas conversando amenidades e rindo exageradamente por motivos desconhecidos, ou então correndo pelas planícies e se deitando na grama. A ideia da felicidade se converte no idílio do campo, onde os indivíduos seriam miseráveis e felizes. O filme investe na noção preconceituosa de que populações desfavorecidas são mais puras pelo contato com a natureza, e de que a verdade provém da boca dos loucos e dos jovens. Não é difícil extrair lágrimas diante do homem desesperado pela morte da mulher, ou da criança confrontada à perda do pai. Trata-se de dores universais exploradas enquanto sintomas de virtude. Este seria um projeto reacionário no sentido estrito do termo, acreditando num retorno às raízes do campo e da família patriarcal.

A estética reforça o romantismo. As imagens se assemelham a um vídeo publicitário de sabão em pó: as cores são profundamente saturadas e contrastadas, as camisetas listradas fazem o vermelho e o azul brilharem contra o verde da natureza (com direito a uma sequência do tipo “se sujar faz bem”). Aposta-se nos reflexos em poças d’água, na iluminação do pôr do sol, nos planos de detalhe das flores, nas câmeras lentas e nos sonhos ainda mais coloridos do que a “vida real” (beirando o grotesco). Uma orquestração imponente invade a narrativa em cada transição de cenas, enquanto os personagens adultos fazem “cara de triste”, ou “cara de felicidade” diante de alguma notícia nova – incluindo close-ups individuais. A linguagem é simplificada ao limite da paródia: a produção se beneficiaria da incorporação voluntária do humor. Se o escritor francês Michel Houellebecq afirma que Paulo Coelho “escreve para quem não sabe ler”, o cineasta turco “filma para quem não sabe assistir”, com toda a agressividade e possível boa vontade que este preceito possa implicar. O diretor reforça sua linguagem como se aplicasse uma lupa em cada cena, distorcendo os efeitos do pretenso naturalismo. Ele busca ensinar a ver por meio da insistência dos professores excessivamente voluntaristas.

Quando o projeto chegar às salas de cinema, ou às plataformas de streaming, é possível que conquiste considerável sucesso de público. Em Meus Sonhos guarda marcante afinidade com Milagre na Cela 7 (2019), outro melodrama turco disposto a matar ou adoecer uma porcentagem significativa de seu elenco para extrair lágrimas do público. Naquele caso, uma criança inocente também se encontrava com um homem deficiente, ambos amparados por uma avó bondosa, mas incapaz de protegê-los do bullying. Os dois filmes valorizam a paisagem campestre do país enquanto fonte primária dos homens bons de coração. Mesmo o bordão “Lingo Lingo” do drama anterior se transforma em “Sevda!” na produção de 2020. Este cinema busca ser edificante e moralmente instrutivo, o que termina por aproximá-lo das produções religiosas, embora não haja uma conexão explícita com textos sagrados (e os personagens sejam muçulmanos, vale notar). Por trás da iniciativa sorridente de reunir tantos órfãos sofridos e pobres para o entretenimento das massas, paira certo paternalismo de quem observa estes grupos de fora, com um exotismo contraproducente.

Filme visto online na 44º Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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