Crítica
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Sinopse
Crítica
O interesse por explorar as diversas possibilidades da linguagem cinematográfica sempre esteve presente na obra da cineasta Lucia Murat, que se divide entre a realização de documentários e ficções premiadas. Em seu mais recente trabalho, resolve estreitar ainda mais a relação entre essas duas facetas de sua filmografia, buscando também inspirações em outras manifestações artísticas, como a dança, o teatro e a literatura, para realizar um filme ensaio sobre o ciclo da vida. Assim como em seu longa ficcional anterior, A Memória Que Me Contam (2013), as memórias são a base para o desenvolvimento de Em Três Atos, e estas são retiradas da vida e da obra da escritora Simone de Beauvoir, especialmente de suas entrevistas e de dois seus livros: A Velhice e Uma Morte Muito Doce.
Destes relatos, em que Beauvoir trata de sua própria experiência de envelhecimento e da morte traumática de sua mãe, Murat extrai as questões existencialistas que marcam o pensamento da filósofa francesa, dando a estas confissões tão íntimas um tom universal. Para isto, a cineasta trabalha com duas personagens principais que representam alter egos de Beauvoir nas fases da vida em que escreveu os livros que serviram como referência para o longa. Assim temos uma escritora aos 50 anos, interpretada por Andréa Beltrão, e aos 80 por Nathalia Timberg. Mesmo que o texto de Beauvoir possa ser reconhecido pelos mais familiarizados, o filme toma o cuidado de nunca citar nomes ou dar referências temporais para não limitar o caráter mais amplo dos densos temas apresentados. A escolha pela teatralidade das atuações de Beltrão e Timberg, declamando suas falas diretamente para o público, sendo enquadradas frontalmente para a quebra da quarta parede, serve para ressaltar o poder do texto de Beauvoir. Graças à competência e ao talento das duas atrizes, cada palavra ganha também um grau emocional mais intenso, através de pequenos gestos, expressões e nuances que enriquecem suas personagens. Um trabalho extremamente sensível e exemplar de ambas. Além da presença desta dupla protagonista, os três atos referidos no título, O Corpo, A Morte e A Despedida, são mesclados a números de dança contemporânea, baseados no espetáculo Qualquer Coisa a Gente Muda, do coreógrafo João Saldanha.
Nestas apresentações residem os momentos de lirismo mais singelos do longa, que terminam por ser a verdadeira força motriz do trabalho de Murat. É na dança, também, que os contrastes propostos pela cineasta ganham mais evidência: a palavra e o corpo, o lúdico e o concreto, o novo e o velho, o passado e o presente. Todos estes embates, representados em cenários minimalistas meticulosamente registrados pela câmera da cineasta, apresentam a bailarina Angel Vianna, de 85 anos, ao lado de uma de suas ex-alunas, Maria Alice Poppe. A entrega e o despudor de Vianna em deixar que o filme explore a fragilidade e as marcas do tempo em seu corpo são comoventes, mostrando que apesar de não possuir mais o vigor e a energia de outrora, como Poppe, a paixão pela arte permanece viva. Pois como ressalta uma das passagens do texto de Beauvoir, a morte começa quando alguém já não se sente mais útil, quando já não pode realizar aquilo que ama. Além de intercalar estas quatro figuras, as escritoras e as bailarinas, Murat também se aproveita dos belos cenários que tem a sua disposição, como o Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, o Cemitério São João Batista e o Hospital Municipal Rocha Maia, além de utilizar passagens noturnas pelas ruas cariocas para compor um quadro rico plasticamente e que serve também à busca da atemporalidade da trama. Com o auxílio de um ótimo trabalho de edição e fotografia, o jogo experimental da cineasta ganha em naturalidade e encantamento, eclipsando a leve estranheza causada inicialmente.
Para complementar seu ciclo de contrastes, Murat vai buscar imagens de moradores do Retiro dos Artistas, quando surgem as duas únicas figuras masculinas do longa. No palhaço que frente ao espelho maquia seu rosto, no pintor que escolhe as cores que irá utilizar em mais um quadro ou na cantora da era do rádio que interpreta seu grande sucesso, sempre há a procura por se sentir vivo no presente revivendo o passado. Ao colocá-los todos lado a lado com antigos retratos de si mesmos, assim como os rostos espelhados de Timberg e Beltrão, Murat conclui que estas imagens estáticas, paralisadas e presas a outra época, só se tornam vivas na memória quando ganham movimento. E é com os movimentos belos e precisos de Maria Alice Poppe que a diretora encerra seu longa. Pois a dança da vida deve continuar, até que a música pare.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Leonardo Ribeiro | 9 |
Ailton Monteiro | 7 |
MÉDIA | 8 |
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