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Sinopse

Em 2019, o rapper Emicida apresentou seu álbum AmarElo no Teatro Municipal de São Paulo, lugar raramente frequentado por moradores da periferia. As canções do artista se misturam a reflexões sobre o apagamento das conquistas históricas do povo negro, responsáveis por criar a identidade brasileira.

Crítica

“Por que o Theatro Municipal”? Emicida confessa que um jornalista lhe perguntou sobre a decisão de apresentar o álbum AmarElo no local que raramente recebe shows de rappers. A resposta poderia ter sido simples e curta, no entanto, ela ocupa o filme inteiro. O personagem principal e coautor efetua idas e vindas no tempo para explicar a importância do teatro, do movimento negro e do encontro entre ambos. Para isso, viaja a episódios distintos do século XX, retorna à escravidão, chega ao coronavírus e a Marielle Franco. Ele evoca arquitetos, músicos, atrizes e filósofas para sustentar sua argumentação histórica e contemporânea, simultaneamente despojada e escolar. Este constitui um dos primeiros méritos do documentário Emicida: AmarElo – É Tudo pra Ontem (2020): a fuga de respostas fáceis a perguntas complexas. O músico e o diretor Fred Ouro Preto preferem lançar questionamentos ao invés de fornecerem explicações. Eles disparam chaves de reflexão, a exemplo do subtítulo “É tudo pra ontem” e da frase “Exu matou um pássaro ontem com a pedra que atirou hoje”, ambos bem fundamentados ao longo da trama.

Visto por suas partes distintas, o projeto não traz qualquer elemento inovador em si. Sucedem-se imagens do show AmarElo, gravações dos bastidores, evocações históricas sobre o movimento negro, animações didáticas. Entretanto, o resultado chama a atenção pela recusa em incorporar facilitadores de linguagem, o primeiro deles sendo os depoimentos diretamente para a câmera. Evita-se a presença de especialistas e convidados discorrendo sobre a negritude, ou então valorizando a música do personagem. Ainda que esteja em evidente sincronia com o discurso do artista, o cineasta não precisa idealizá-lo para reconhecer o valor de sua obra. O cantor não é comparado a outros rappers, enunciado enquanto pioneiro de qualquer movimento, tampouco apresentado enquanto bom intérprete e letrista (embora o seja). A direção acredita na capacidade do espectador em tirar suas próprias conclusões a partir dos fragmentos do show, além das interações com produtores e músicos (Zeca Pagodinho, Fabiana Cozza, Wilson das Neves). Este seria menos um documentário sobre Emicida do que com ele. O espectador terminará a sessão sem conhecer sua trajetória pessoal nem seus álbuns anteriores, afinal, o foco se encontra em outro lugar.

Precisamente, o resultado encontra sua força no encontro entre passado e presente, saltando entre a contemporaneidade e os anos 1920, entre o show de 2019 e a década de 1940. Emicida parte de um texto escrito, ainda que lido em entonação próxima da conversa. Ele utiliza um linguajar acessível, com as gírias e expressões da periferia paulistana, para abordar acontecimentos históricos fundamentais. O projeto não sucumbe ao pop no sentido de reciclagem e simplificação do conteúdo em nome do maior alcance. Pelo contrário, o narrador-protagonista inclui as noções de neossamba, interseccionalidade e pretoguês, acompanhadas de devida contextualização. Embora vise informar o espectador a respeito de conceitos, o documentário o trata com respeito, de igual para igual. A superação da leitura da Histórica enquanto sucessão linear de relações de causa e consequência comprova a complexidade do raciocínio. As artes e as ciências tornam-se fontes cujas citações podem ser pinçadas conforme interessa à trama. A cena do rapper com as plantas se fragmenta em partes distintas, a vida e morte de ídolos se sucedem através das temporalidades. O verso “É tudo pra ontem” lembra o “Agora eu era um louco a perguntar / o que é que a vida vai fazer de mim”?, de Chico Buarque. Passado, presente e futuro fundem-se na meditação politizada e carinhosa sobre o ativismo através da arte.

A este propósito, o filme impressiona pela intensa carga afetiva. A luta do povo preto contra um sistema opressor é desenhada através de abraços apertados entre Emicida e seus colegas, a admiração recíproca com outros artistas, flashes de brincadeiras com os filhos, homenagens à mãe. A mensagem mais frequente nas letras e depoimentos do artista diz respeito à necessidade de união e empatia. “É nóiz por nóiz”, repete a canção. As motivações são fundamentais: o protagonista enfrenta o status quo em nome da ternura sincera por pessoas negras e cidadãos desprivilegiados, ao invés de formar alianças convenientes em nome do combate. Poucos artistas discursariam sobre “a força de amar” e “a importância de acreditar” sem soarem inocentes, no entanto, seria difícil apontar qualquer romantização no ponto de vista do cantor originário da periferia. As lágrimas e a admiração da plateia soam verdadeiras porque o artista fala como se estivesse sentado com todos eles numa mesa de bar. Tanto nos diálogos espontâneos quanto nas letras trabalhadas ao longo dos anos, o protagonista transparece a qualidade de líder e irmão, artista popular e erudito, filósofo e colega da quebrada. A transição pelos espaços – culminando na ocupação fraterna do Theatro Municipal – atesta sua incrível capacidade poética e de comunicação.

Ao mesmo tempo, o ritmo se revela agradável, atingindo um precioso meio-termo entre o melancólico e o propositivo. A montagem se equilibra entre o que prefere ressaltar (as canções com Pabllo Vitar e Majur, a admiração por Wilson das Neves) e o que apenas menciona (os laços familiares, a herança política e simbólica de Marielle). Emicida: AmarElo – É Tudo pra Ontem pratica uma rara política dos afetos, ainda mais excepcional dentro do subgênero dos documentários. A ternura provém menos do diretor para com seu protagonista, caso comum das obras-homenagens, do que do rapper com o público e outros artistas, e vice-versa. Entre estruturas muito simples (a divisão em três partes: Plantar, Regar e Colher) e organizações menos óbvias (a citação a Orfeu Negro, a interação com Ruth de Souza), traça uma linha coesa. Se oferecesse apenas o retrato de um show, uma aula sobre história do movimento negra, uma evocação dos melhores momentos da música brasileira ou um making of do álbum AmarElo, resultaria insuficiente. Entretanto, pelo entrecruzamento constante destas linguagens, em costura fluida e quase invisível, percebe-se que arte também é política, que também é filosofia, que também é visão de mundo. A arma mais potente deste grande artista encontra-se na proposta de amar o outro como a si mesmo. Há tempos em que é preciso reafirmar o óbvio.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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