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Sinopse

Emilia Pérez: No México, uma advogada recebe uma oferta inesperada para ajudar um temido chefe de cartel a se aposentar de seus negócios e desaparecer para sempre. Ela se torna a mulher que ele sempre sonhou ser.

Crítica

Os musicais estão de volta à moda? Depois dos excelentes La La Land: Cantando Estações (2018) e Amor, Sublime Amor (2021), para citar apenas dois recentes, até o arqui-inimigo do Batman se rendeu ao gênero em Coringa: Delírio a Dois (2024). E agora é a vez do experiente cineasta francês Jacques Audiard mergulhar nesse universo com Emilia Pérez, filme escolhido para abrir o Festival do Rio 2024. Sua protagonista... bem, é difícil determinar a personagem principal desse filme que contém números musicais vibrantes/fortes e uma reflexão interessante sobre a dualidade humana. A primeira candidata ao posto é Rita Moro Castro (Zoe Saldana), advogada acostumada a livrar culpados das garras da lei sem receber o devido crédito por isso. Aliás, está aí a primeira crítica ao mundo masculino: quem fica com os louros da defensora é sempre o seu patrão homem. Depois de mais uma vitória nos tribunais, ela recebe a ligação enigmática de alguém que lhe oferece riqueza e vida tranquila em troca de uma missão misteriosa. Nesse ponto, Audiard já tirou da manga algumas cenas musicais que certamente desagradarão os detratores do gênero à medida que tenderão a encher os olhos dos seus admiradores pela maneira como se impõem narrativamente. Zoe Saldana se sai bem cantando e dançando em meio à reflexão sobre isso de salvar a pele de abusadores e assassinos. Mas de quem é a tal voz? Qual será a pessoa que, do outro lado da linha, seduz Rita com as promessas de uma vida nova?

A voz do outro lado do telefone, grave e intimidadora, é de Manitas (Karla Sofía Gascón), um dos maiores narcotraficantes do México, homem temido por quem tem um pingo de bom senso. E o pedido que ele faz a advogada não tem a ver com apagar os rastros de suas atividades ilegais. Manitas diz com uma impetuosidade firme: “quero ser mulher”. Portanto, Rita é encarregada de pesquisar lugares em que a segunda candidata a protagonista de Emilia Pèrez pode fazer a cirurgia de redesignação sexual e se transformar na mulher que sempre desejou. Utilizando habilmente as músicas originais para ajudar a contar a história, ou seja, as canções têm uma função narrativa imprescindível, Jacques Audiard ilumina alguém disposto a quebrar com todas as lógicas do universo masculino da criminalidade se isso significar existir de acordo com aquilo que está na sua alma. A procura de Rita é breve, passa pela Tailândia e encontra seu destino em Israel – ocasiões também pontuadas com números musicais. A jornada para viabilizar o sonho é mais importante para revelar os sentimentos de Rita em relação à demanda do que como algo relevante ao contexto. Fato é que Manitas se transforma em Emília Pérez, deixa para trás o narcotráfico, não sem antes providenciar conforto e segurança à sua família – formada pela esposa, Jessi (Selena Gomez), e pelos dois filhos do casal. São renúncias para ter uma vida nova, assim como Rita deixa várias bagagens pelo caminho ao aceitar a proposta que muda sua rotina.

Ainda à procura da compreensão sobre quem é a verdadeira protagonista de Emília Pérez, percebemos Rita como a pragmática adequada às circunstâncias em busca de sobrevivência. Enquanto isso, Emília encontra na filantropia uma razão ao seu novo ser. É interessante essa guinada de 360°: Manita foi a encarnação da brutalidade; Emília é a benfeitora. Mas não se trata estritamente de ou isto ou aquilo, mas da dualidade. Os números musicais não servem ao escapismo, pelo contrário. Aliás, o musical é um gênero frequentemente associado ao respiro que os personagens podem ter em meio a experiências duras. Não é bem o que acontece nesse filme. Os números repletos de coreografias e letras criativas servem para ampliar a nossa relação com os personagens, especificamente nos dando acesso à intimidade que, assim, eles não precisam revelar por meio de monólogos interiores e/ou diálogos confessionais. Do ponto de vista da progressão dramática, Audiard frustra (que bom) determinadas expectativas que ele próprio ajuda a criar. Por exemplo, quando Emília volta a conviver com a ex-esposa, é de se esperar que as revelações sobre traições tragam à tona a violência do “falecido” Manita ou que em algum momento a atividade sem fins lucrativos da arrependida Emília seja comprometida pela descoberta da identidade de nascimento. E o realizador mantém implícita a dúvida sobre a possível vontade de Emília querer ser uma rainha equivalente ao rei que Manita foi antigamente.

Jacques Audiard vem demonstrando uma versatilidade impressionante nos últimos anos. Por exemplo, seus dois trabalhos mais recentes não poderiam ser mais distantes. Paris, 13º Distrito (2021) é um belo filme que retrata em preto e branco, de modo realista, a juventude em constante crise existencial. Em Emília Pérez ele toma o caminho oposto, observando de modo estilizado pessoas de uma (ou duas) geração anterior que seguem lutando para encontrar o seu lugar no mundo. As coadjuvantes personagens não são psicologicamente profundas, sobretudo a pragmática Rita e a passiva Jessi, pois o longa­-metragem privilegia as circunstâncias, as cirandas amorosas, os desejos e frustrações se chocando numa história que chega à definição de Emília como a protagonista sem deixar outras candidatas ao posto como meras subalternas. Zoe Saldana se expressa confortavelmente em espanhol, língua nativa dos seus antepassados, depois de anos fazendo filmes (inclusive superproduções) falados em inglês. Já sua conterrânea Selena Gomez não tem a mesma fluência, mas nem chega a comprometer em espanhol. Por fim, Karla Sofía Gascón compõe de maneira imponente essa mulher transexual que coloca em suspense o seu lado agressivo – que somente volta à tona quando o assunto é a provável distância da dupla de filhos pequenos. Usando e abusando de artifícios, às vezes dialogando propositalmente com o mau gosto em cenas hiperbólicas e histriônicas, o francês Jacques Audiard faz outro belo filme.

Filme visto no 26º Festival do Rio em outubro de 2024.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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