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Crítica


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Sinopse

Jovem rica e inteligente, sem pretensões de casar tão cedo, Emma Woodhouse alimenta uma fama de casamenteira. Ela aproxima pessoas que considera compatíveis à formação de casais, sem perceber quando é inconveniente.

Crítica

A escritora Jane Austen é mais frequentemente associada aos romances dramáticos como Razão e Sensibilidade (1808) e Orgulho e Preconceito (1813) do que às comédias de costumes. Embora sempre tenha manifestado senso crítico quanto às normas sociais da virada dos séculos XVIII e XIX, nunca efetuou uma comédia com tamanha ironia quanto em Emma (1815), último romance publicado em vida. Nesta trama, as habituais combinações de amores e desamores, paixões à primeira vista e casamentos desfeitos se mantêm, porém em certo grau de exagero que transparece a ridicularização dos rituais da época. Não há aqui nenhum Sr. Darcy, idealizado e conquistador, nem alguma mocinha perdidamente apaixonada, esperando para encontrar pelo príncipe. A protagonista, Emma, não pretende se casar (ela afirma que “já tem uma casa para cuidar”), e os homens que cruzam seu caminho são fúteis, desengonçados, interesseiros ou pouco atraentes. A distribuição romântica que se levava a sério nos romances anteriores agora permite rir de si própria. Para um contexto tão distante do nosso século XXI, o humor autodepreciativo se revela uma ferramenta adequada para estabelecer um distanciamento crítico.

O principal mérito desta adaptação cinematográfica provém da direção. Autumn de Wilde possui olhar fino para o humor levemente sarcástico, mas jamais inverossímil nem infantilizado. O cineasta se diverte com os códigos diários: a dificuldade de vestir tantas roupas, as normas de etiqueta que exigem elogios corteses a pessoas desagradáveis, presentes a convidados indesejados, o término de um prato de comida de gosto duvidoso e mesmo a necessidade de sentar numa poltrona ao mesmo tempo que o anfitrião. Wilde gosta de filmar a entrada e saída de mordomos e acompanhantes, as poses rígidas demais dos cavalheiros, o penteado impecável das donzelas. Cada cômodo é decorado com tantas flores e papéis de parede que se situa um grau acima do realismo – nada a ponto de soar fantasioso, mas o suficiente para se sublinhar o kitsch, a hipocrisia, o mundo das aparências. É difícil obter tal equilíbrio: ao mesmo tempo em que os ricos trabalhos de arte e de fotografia correspondem a reconstituição empenhada da época, eles também despertam humor por si próprios (vide os colares grandes demais dos homens, a roupa inteiramente estampada do Sr. Woodhouse e os ensaios de dança de Emma e Harriet).

Com a ajuda de uma trilha sonora aventuresca, conferindo aparência de traquinagem tanto aos momentos felizes quanto aos momentos tristes, constrói-se uma sátira menos ingênua do que poderia aparentar às relações de classe e gênero no Reino Unido. Emma constitui uma anti-heroína sagaz por enxergar os laços sociais com distanciamento: ela se horroriza com a maternidade da irmã mais velha – o bebê não para de chorar, a mãe demonstra uma preocupação excessiva com a saúde do pequeno -, despreza os cortejos delicados dos rapazes da região, discorda dos pontos de vista do pai e despreza as senhoras fofoqueiras da região. Mesmo reservada a uma posição passiva, na qual se espera que aceite qualquer homem ou oportunidade oferecida, ela deseja ter controle sobre as relações ao redor, formando casais incompatíveis e intrometendo-se nos romances alheios, sem buscar um homem para si mesma. Emma não é apenas uma jovem manipuladora: ela também constitui uma mulher com sede de liderança e atividade, uma garota sem grande apego familiar, nem ambições românticas. Ela possui as qualidades de uma narradora em off, porém dentro da trama, ao observar o mundo de um ponto distante.

O roteiro de Eleanor Catton fornece aos atores inúmeras oportunidades para brincarem com pequenos gestos, olhares ambíguos, uma ou outra fala mais sublinhada. A norte-americana Anya Taylor-Joy representa uma escolha curiosa para o papel da jovem britânica, mas efetua boa composição da protagonista difícil, capaz de despertar tanta simpatia quanto antipatia. Johnny Flynn, mais conhecido como cantor, também surpreende neste papel. Talvez tenha sido uma escolha astuta apostar no rapaz de trabalho mais cru, ao invés dos tradicionais galãs preocupados demais em posar belamente para a câmera. Eles estão cercados por uma galeria excelente de atores cômicos, como Bill Nighy, Mia Goth e Miranda Hart, roubando a cena sempre que o roteiro lhes permite. O caráter teatral do romance – quase inteiramente baseado em conversas dentro de palácios – é diluído pelas vinhetas cômicas, pela estética chamando atenção a si mesma (as cores pastéis, a trilha sonora) e por um trabalho discreto, porém dinâmico de câmera e de montagem. Talvez Emma. (2020) se estenda demais, perdendo um pouco do ritmo durante o terço central, porém se recompõe rumo à conclusão.

A necessidade de desenvolver a trama para além de duas horas de duração se justifica pela vontade dos criadores – e de Austen, antes deles – em desenhar uma ciranda tragicômica e absurda de amores, onde Emma ama Frank Churchill (Callum Turner) sem conhecê-lo, mas descobre que ele pode ter interesses em Jane Fairfax (Amber Anderson), enquanto é cortejada pelo Sr. Elton (Josh O’Connor), que pode estar apaixonado por Harriet (Mia Goth), interessada no Sr. Knightley (Johnny Flynn)... Há uma quantidade expressiva de reviravoltas, dentro do ritmo conturbado das farsas cômicas: um personagem acredita que o admirador secreto corresponde a uma pessoa, para então descobrir que se trata de outra e assim por diante. Deste modo, durante o clímax do baile, reune-se em cena uma dezena de personagens desconfortáveis com a presença alheia, porque todos já se amaram e foram rejeitados uns pelos outros. O humor nasce também do progressivo emaranhado de relacionamentos, diluindo a idealização da anti-heroína dentro do contexto muito mais amplo onde ela constitui uma simples peça da engrenagem. Ao final, caso os matrimônios ocorram, eles se dão por iniciativa e decisão das mulheres, não dos homens. Nada mau para uma obra escrita cerca de duzentos anos atrás.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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