Crítica
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Heloísa Passos já era uma diretora de fotografia consagrada quando decidiu debutar como realizadora de longas-metragens em Construindo Pontes (2017). Neste documentário, ela transitava por um caminho comum no cinema brasileiro documental recente: o dos filhos que filmam para acertar as contas com os seus pais e, consequentemente, com o próprio passado do Brasil. Heloísa fez um filme sobre a sua conflituosa relação com o pai engenheiro, cujo apogeu profissional aconteceu durante a ditadura civil-militar que desgovernou o país por 21 anos. O principal elemento desse documentário era o atrito, vide as diversas cenas em que nele pai e filha discutem (às vezes veementemente), quando suas visões de mundo praticamente opostas se chocam diante da câmera. Heloísa continua nessa seara em Eneida, uma vez, que desta vez, faz um filme sobre a sua mãe, especificamente a respeito do problema familiar que causou o afastamento da sua irmã mais velha há mais de 20 anos. Porém, diferentemente de Construindo Pontes, aqui o signo principal é a empatia, pois Heloísa não sublinha possíveis desavenças com um de seus genitores, pelo contrário, claramente funcionando como apoio logístico e emocional para uma tentativa de reconciliação. Eneida está com 84 anos e sofre pela distância da filha primogênita, dela apartada pela picuinha financeira que causou marcas de duração prolongada.
Heloísa Passos novamente se coloca à frente da câmera como personagem, de certa forma se expondo e, às vezes, deixando à mostra um pouco dos bastidores da realização do filme. Construído quase como um thriller investigativo (embora sem a tensão inerente a esse tipo de produção), Eneida é uma soma de reminiscências trazidas à tona em meio à busca e momentos reflexivos sobre a fragilidade dos elos emocionais. Mesmo que apareça pouco no documentário, Álvaro, o pai de Heloísa e marido de Eneida, continua sendo enxergado como signatário do patriarcado que lhe autoriza a subjugar mulheres à sua volta. Num dos instantes mais inspirados da produção, a cineasta-filha deixa a mãe falar sobre como a submissão às vontades do marido era praticamente incontornável na juventude de ambos. Eneida fala em tom confessional sobre acatar os posicionamentos do marido sem muita margem de manobra para questioná-los, inclusive no que diz respeito à briga que provocou o distanciamento da filha ausente. Claramente, Heloísa toma partido da mãe nesse imbróglio, sequer a questionando se a controversa decisão sobre a casa da família foi mesmo imposição do marido ou se ela concordava com o benefício à caçula que afastou a primogênita. O longa nos induz a pensar que Eneida foi uma voz vencida, mas não esmiúça apropriadamente essa dinâmica para a esclarecer.
O argumento de Eneida é assinado por Heloísa Passos e Letícia Simões, esta diretora de Casa (2019), filme no qual as relações entre três gerações de mulheres são colocadas em evidência, ocasionalmente também de modo conflituoso. Mas, se em Construindo Pontes tínhamos a relação pai/filha como protagonista, por isso a evidência de tantos conflitos capturados pela câmera, desta vez Heloísa se coloca relativamente um pouco à distância para auxiliar a demanda materna. Ela se torna uma espécie de detetive com entradas privilegiadas, alguém que está sempre observando a mãe com atenção, demonstrando simpatia por essa vontade materna de reencontrar a filha desgarrada e, com isso, conhecer netos e bisnetos. É uma pena que certas coisas sejam somente pontuadas sem muito desenvolvimento ao longo do documentário, como a exposição de partes do processo de feitura. Em determinada cena, Heloísa e a mãe tentam contato com o marido de uma das netas de Eneida, o professor de uma escola judaica ortodoxa da cidade de São Paulo. Repreendida por um segurança que limita o espaço de filmagem, Heloísa explica que não pode registrar ninguém sem autorização e é orientada pela operadora de câmera: “mostra no teu celular o enquadramento para ele, Helô”. No entanto, a realizadora não assimila os bastidores como parte orgânica do tecido dramático do filme, somente os citando.
Exibido no Festival É Tudo Verdade de 2022, Eneida vai desenrolando a história familiar sem postergar demais a resposta à pergunta que fica martelando desde o começo: o que causou essa distância da primogênita? Ao revelar nos primeiros 20 minutos do filme os motivos do isolamento da primogênita, Heloísa Passos demonstra que curiosamente não está preocupada com o suspense, quase uma contradição, a julgar pelo tom de thriller que ela utiliza até a última cena do documentário. Uma pena que a cineasta insira as esparsas reflexões sobre machismo meramente como outro componente encarregado de gerar simpatia pela protagonista. Em nenhum momento Heloísa Passos mergulha na opressão sofrida pela mãe sem voz ativa, sequer situa os dogmas do judaísmo ortodoxo como outro conjunto de códigos que pode perpetuar a opressão às mulheres em detrimento à “onipotência” dos homens. Como personagem, Eneida poderia ser bem melhor investigada, o que fica evidente nos ótimos instantes em que o passado é revirado ao ponto de gerar reflexões importantes. No entanto, a mãe da cineasta acaba restrita ao retrato de uma mulher que anseia desesperadamente para encontrar sua filha há décadas ausente. Dessa vez, o conflito tem duas facetas claras: a do presente repleto de empecilhos para a reconciliação e a do passado recheado de mal-entendidos e desavenças que ainda perduram.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Marcelo Müller | 5 |
Arthur Gadelha | 7 |
Chico Fireman | 7 |
Alysson Oliveira | 8 |
Leonardo Ribeiro | 7 |
Isabel Wittmann | 7 |
MÉDIA | 6.8 |
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