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Sinopse

Davud é um jovem adulto que leva uma vida conflituosa com a mãe. Um dia, quando sai de casa, se depara com uma série de situações resultando na morte das pessoas que encontra. Ele passa a refletir sobre o amor e seu destino.

Crítica

Davud (Orkhan Iskandarli) é um anjo da morte. Sem desejá-lo, nem possuir qualquer controle a respeito, este homem rebelde se encontra com uma sucessão de pessoas que morrem na sua frente. Em muitos dos casos, ele não possui qualquer intervenção direta nas tragédias, ainda que aparente catalisá-las. “É um homem estranho: ao matar uma pessoa, ele salva outra”, notam os capangas encarregados de capturá-lo. Esta seria a condição trágica do herói contemporâneo: a supressão acidental de uma vida proporciona a libertação de uma mulher agredida pelo marido, de outra que passa os dias à espera de companhia, ou ainda de uma terceira que deseja pronunciar as palavras finais antes do suicídio. Ao longo de um único dia, Davud se envolve, nas condições mistas de testemunha, cúmplice e assassino, em diversas mortes. Parte figura protetora, parte homem condenado a um destino cruel, ele foge pelas estradas no interior do Azerbaijão, percorrendo planícies extensas sem uma finalidade precisa. Ele se esforça inutilmente em escapar de sua sina, enfrentando incontáveis conflitos que jamais poderiam ocorrer no período de um dia apenas. Na base deste drama existencialista existe o gosto pelo cinema fantástico.

Entre Mortes constitui uma experiência fascinante. Por um lado, aposta no cinema de aparência documental, com imagens duradouras e contemplativas, além de ações cotidianas e uso naturalista das paisagens. Por outro lado, acumula encontros improváveis como uma fábula absurda, repleta de humor desconfortável – como rir da mulher muçulmana nua, deitada em sua cova, ou da noiva desesperada que, ao observar o primeiro anônimo pelo caminho, lhe diz “Eu te amo”? Desenvolve-se uma comicidade triste e assumidamente artificial. Em outras palavras, a estética naturalista se confronta à narrativa antinaturalista, provocando um efeito singular. Quando Davud e a Noiva (Rana Asgarova) adentram uma espessa neblina à beira da estrada, não sabemos se o fenômeno constitui uma neblina literal, ou um parêntese metafórico na história repleta de poesias. Quando o herói encontra uma mulher anônima e explica que está “procurando o Amor”, a fala pode ser interpretada enquanto confissão humilde ou autoconsciência irônica. A narrativa se encaixaria tanto numa leitura pragmática (um homem sai de casa para comprar o remédio da mãe idosa, deparando-se com mortes aleatórias) quanto numa leitura simbólica (um homem busca fugir à realidade opressora, confrontando-se ao destino trágico).

A construção estética impressiona por ser simples e intricada. A natureza não possui qualquer tratamento idealista, nem miserabilista por parte do diretor Hilal Baydarov. No entanto, combinada às falas misteriosas (o enigma das portas na cena inicial, as evocações líricas dos narradores em off, as conversas que não revelam os rostos dos personagens), produzem estranhamento, como se o som gerasse atritos com a imagem ao invés de ilustrá-la. A banda sonora e as captações imagéticas, separadamente, produziriam significados muito distintos daqueles que sugerem quando reunidas. Por isso, é possível ao mesmo tempo rir e se comover com a menina chamada “Raivosa”, presa em cativeiro pelo pai após ser mordida por um cachorro; se divertir e se espantar com a antiperseguição dos homens encarregados de matar Davud, sempre a dois passos do alvo, mas incapazes de colocarem as mãos no sujeito que se desloca pacificamente. Este seria um filme de atmosfera, na compreensão mais poética do termo (a sucessão de tragédias, a morte perseguindo o herói) e também na interpretação referencial (vide a sucessão de planícies, lamaçais, neblinas, pastos, dias frios e noites inóspitas). Transmite-se um sentimento palpável de solidão, não apenas do jovem, mas de todas as mulheres condenadas que se espalham pelo caminho.

Enquanto o cinema autoral debate com paixão o plano-sequência, valorizando a dificuldade do dispositivo e a coreografia técnica, Baydarov prefere a múltiplas narrativas no interior do plano fixo. Observando os personagens a uma distância considerável (o primeiro close-up ocorre aos 52 minutos), permite que incontáveis desdobramentos se sucedam em uma única composição. De dentro do cativeiro da Raivosa, por exemplo, presenciamos a chegada do herói em busca de abrigo, até percebermos a garota escondida num canto escuro do enquadramento, com os homens chegando em segundo plano, ao fundo, e então novos movimentos ocorrendo numa terceira camada, ainda mais distante. O cineasta azerbaijano promove a decupagem dentro do plano, alternando pontos de vista, personagens e atividades sem mover a câmera nem alterar a profundidade de campo infinita. É necessário um refinamento raro de mise en scène para que esta elaboração soe propícia à trama e aos personagens, ao invés de mera demonstração de vaidade. As sequências tão fixas quanto dinâmicas reforçam a duração (elemento fundamental em se tratando da morte) e intensificam o mistério da narrativa (quanto mais vemos os personagens, menos os conhecemos).

Curiosamente, Entre Mortes nunca deixa de ser uma história de amor. Privilegia-se o amor próprio, às vezes interpretado enquanto senso de honra ou manifestação de carência. Trata-se de uma obra de afetos deslocados, desesperados, entre pessoas que não medem as consequências de seus atos porque não têm mais nada a perder. Caso fosse filmado de perto, em ritmo fragmentado, o roteiro poderia dar origem a um projeto de ação, ou ainda a um melodrama novelesco. Aí se encontra a genialidade desta condução, muito ciente do efeito obtido por cada enquadramento, calculando a necessidade do esperado close-up, a intromissão de algum raro diálogo ou a presença da trilha sonora. Alguns filmes calam seus personagens quando estes precisariam dizer algo, pelo simples prazer de fazerem um projeto mudo. Aqui, no entanto, eles transmitem o necessário a respeito de suas psicologias, ainda que muito pouco sobre suas jornadas. Existe algo mais amoroso, e também mais violento, do que filmar a morte natural dentro um único plano, permitindo ao espectador assistir ao lento desaparecimento de uma personagem? Somos colocados em posição ativa enquanto interlocutores, sendo convidados a imaginar o que de fato estaria acontecendo. No entanto, permanecemos passivos quanto aos rumos da trama, que ocorrem apesar de Davud, e não graças a ele. Identificamo-nos com o protagonista silencioso por sua universalidade: embora corra ferozmente da morte, ele não pode impedir a finitude de si, nem daqueles que ama.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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