Crítica
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A imaginação do futuro na ficção científica muitas vezes passa pelo conceito da distopia, essa antítese da projeção utópica de um amanhã no qual a tecnologia garantiria dias felizes para a humanidade. A produção turca Era uma vez no Futuro: 2121 aproveita essa tradição de certa forma pessimista para desenhar uma realidade em que as pessoas são obrigadas a morar em abrigos subterrâneos e se sujeitar a um sistema opressor que tem cara, cheiro e modus operandi fascista. Para efeitos de comparação, é algo semelhante àquilo que o realizador baiano Roberto Pires fez no filme brasileiro Abrigo Nuclear (1981), sobretudo no que diz respeito aos corredores estreitos do subsolo, à sujeição ao comando central que dá ordens para supostamente “garantir a unidade”, à uniformização e à imaginação da superfície como um objetivo. Desse modo, Pires e sua colega turca Serpil Altin bebem na mesmíssima fonte, logo reproduzindo elementos e abordagens que se tornaram canônicas ao longo do tempo. No entanto, não percamos de vista o fato de que essa produção selecionada para o 19º Fantaspoa é dirigida por uma mulher, o que se reflete justamente na perspectiva que temos dessa realidade aterradora. A protagonista vivida por Selen Öztürk é quem possui a jornada de transformação, a esclarecida sobre os fatos, a subserviente que começa a questionar o status quo antes seguido sem qualquer senso crítico.
Nesse mundo crível representado em Era uma vez no Futuro: 2121, todos usam praticamente a mesma roupa – com diferenças de cores entre as funções dentro da sociedade –, os cortes de cabelo são não menos uniformizadores e há uma sensação permanente de robotização. A protagonista é mãe de uma adolescente (fase chamada de Geração Jovem), casada com um membro do laboratório que tende a seguir obedientemente as regras e filha de uma senhora idosa (fase batizada de Geração Velha). Uma vez que se descobre grávida, ela tem de lidar com as consequências da implacável Lei da Escassez, regra que prevê o assassinato do membro mais velho de uma família quando é iminente a chegada de uma Nova Vida (como são denominados os bebês nessa distopia). Como é possível perceber, até nas nomenclaturas há essa noção constante de que os humanos foram se automatizando sob a influência de uma estrutura por eles criada a fim de garantir a sobrevivência da raça. Uma vez que está prestes a se tornar mãe (não nos esquecemos da filha anterior, mas esse ‘erro’ faz parte de uma revelação tardia e desimportante), a personagem de Selen Öztürk entra numa crise pessoal. A seguinte pergunta parece ecoar em sua cabeça: será que não vale à pena abortar para que a sua mãe sobreviva? Claro, na sociedade totalitária a interrupção de gravidez é considerada criminosa e imperdoável.
O terreno está apropriadamente pronto e adequado a uma série de debates de ordem pessoal, psicológica e política. No entanto, falta experiência e traquejo à cineasta Serpil Altin no desenvolvimento desses elementos e apontamentos citados. Por exemplo, ela poderia enfatizar bem mais o fato de o marido se tornar adepto do aborto somente quando a prática ilegal se revelar a única possibilidade de ele sobreviver. Quantos homens não gritam por aí a sua objeção à interrupção das gravidezes, mas mudam rapidinho de opinião se isso os beneficiar? Pena essa hipocrisia infelizmente observada também com fartura na realidade não ser sublinhada pela realizadora como um sintoma da manutenção da lógica de gênero que determina os poderes naquela coletividade. Outra coisa mencionada, até mais de uma vez, mas não elaborada ao ponto de engrandecer o filme, é a supremacia da juventude sobre os demais estratos dessa sociedade. Quanto mais velhas, mais descartáveis as pessoas são para esse sistema que defende a sua indefensável postura etarista com base na projeção de futuro que relega o presente e o passado a um lugar menor. De novo, Serpil Altin não utiliza esse viés como forma de inflamar a revolução que acontece vagarosamente na cabeça fervilhante de sua protagonista. Pode-se dizer que o principal problema está na maneira frouxa como ela articula essas tantas rachaduras.
Era uma vez no Futuro: 2121 lida bem com as evidentes restrições orçamentárias, para isso se valendo da criatividade, algo perceptível na maneira como é construído esse panorama subterrâneo controlado por regras que não devem ser questionadas. Paredes rústicas, alumínio ornamentando instrumentos cotidianos, uniformes laranjas – que aludem a presidiários –, penteados repletos de retas, modos de agir atravessados por uma repressão vendida como única solução para sobreviver ao apocalipse, são alguns dos elementos que dão credibilidade a esse universo. Pena que Serpil Altin não seja tão bem-sucedida no desenvolvimento quanto o é ao formular a sociedade subterrânea que evidentemente reproduz um imaginário machista. Os desdobramentos acontecem, as pequenas mudanças se tornam teoricamente grandes movimentos, mas não é repassada ao espectador essa noção efetiva de uma revolução. O longa-metragem faz um trabalho de cartilha ao imaginar um cenário caro à ficção científica e preenche-lo com apontamentos que dizem respeito à realidade. Assim sendo, o gênero e suas particularidades formam uma embalagem atrativa, especialmente pela natureza especulativa e pessimista de um mundo que não se beneficiou tanto da tecnologia. Serpil Altin desenha muito bem as paredes de casa, garantindo que ela pareça habitável, mas peca ao inserir a sua mobilha.
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