Crítica
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Sinopse
Um jovem professor de artes está terminando o serviço obrigatório num vilarejo remoto. Suas esperanças de ser transferido à capital começam a esvair quando ele é acusado por duas alunas de contato inadequado.
Crítica
O primeiro personagem apresentado em Ervas Secas é o inverno inclemente. Antes mesmo do aparecimento da figura humana acompanhada desde longe, prevalece uma brancura opressora – panorama que leva nosso o olhar a buscar outros referenciais visuais, a fim de não nos perdermos na angustiante ilusão de infinito. Porém, o protagonista dessa história é Samet (Deniz Celiloglu), professor que cumpre um período obrigatório (três anos) de atividades profissionais numa província turca afastada da agitação metropolitana. Ele conta as horas para deixar de lado essa rotina enfadonha pela falta de novidades, algo reiterado frequentemente pelo cineasta Nuri Bilge Ceylan. No entanto, o mais significativo na relação entre esse sujeito e o meio do qual pretende escapar, tão logo seja possível, é a atitude arrogante diante daquelas pessoas por ele consideradas ignorantes, atrasadas, em tudo divergentes do que lhe desperta interesse. Em determinado momento da trama, pressionado por uma acusação que pode complicar seus planos, Samet desconta de modo agressivo nos alunos, gritando que todos ali serão sempre agricultores “plantadores de batata”, assim desdenhando dos aprendizes. Ele minimiza os sonhos daqueles que podem ter comprometido os seus planos. Evidentemente, Samet não é um personagem moral e eticamente correto, dos que oferecem ao espectador um comportamento exemplar. Pelo contrário. É justamente da tormenta de contradições que o filme tire seu melhor.
Em certo ponto de Ervas Secas, o humilde dono da casa de chá é indagado sobre os motivos de alguém para fazer uma coisa horrível. A resposta é: “porque ele é humano”. Trata-se da visão que desconcerta o interlocutor pela aparente falta de julgamento e, de quebra, pela aceitação da condição distante de uma ideia romântica do tipo “heróis vs vilões”. Como fez durante toda sua carreira, Nuri Bilge Ceylan aponta (e tem tempo suficiente para desenvolver) os traços mais detalhados de uma personalidade complexa. Samet é ora um homem agradável, ora um sujeito que demonstra predisposição para ser escroto. A relação que ele estabelece com uma de suas alunas, a estudiosa e simpática Sevim (Ece Bagci), é desenhada pelo realizador turco como uma conexão ambivalente. Por um lado, é bonito o elo entre o mestre e a aluna. Por outro, parece inadequada a atenção que ele dispensa individualmente a ela, como ao presenteá-la com um espelho e solicitar segredo. Há uma cena indicativa desse modus operandi inoportuno (no mínimo imprudente) do professor que sequer pondera as implicações de seus atos. É a conversa que os dois têm num ponto cego de luz na escola, posição que os reduz a sombras dialogando. A falta de luminosidade deixa implícita a existência de algo de perigoso que pode ultrapassar a inconveniência. Será que Samet seria capaz de assediar sexualmente essa criança que lhe adora?
De toda forma, diferentemente de filmes como A Caça (2012), aqui o princípio não é a dúvida a respeito do que verdadeiramente aconteceu para duas garotas (entre elas Sevim) denunciarem Samet, bem como seu colega de trabalho/casa, Kenan (Musab Ekici), por conduta inapropriada. Depois de manter brevemente os questionamentos sobre responsabilidades, Nuri Bilge Ceylan não dá tantas margens para mal-entendidos, sinalizando o revanchismo infantil como provável motivador da celeuma – mesmo que a conduta do professor não seja totalmente correta. No entanto, com tempo suficiente para cozinhar as nuances e contemplar os desdobramentos dos acontecimentos, Ervas Secas vai sendo cada vez menos sobre responsabilidade e mais a respeito do exercício do poder. Sim, pois toda a sequência envolvendo a denúncia, a conversa com o secretário de educação e as posteriores demonstrações de descontentamento dos acusados localizam o controle da situação. O diretor da escola é repreendido por ter levado o ocorrido às esferas superiores que, por sua vez, colocam panos quentes no possível crime sem ao menos investigar. Mais tarde, o protagonista vomita nos seus alunos uma série de agressões gratuitas, com isso indo à desforra porque a sua posição de professor “permite” impor castigos e coagir denunciantes. Aliás, trata-se da cena mais tensa do filme, na qual Samet perde o seu controle.
Ervas Secas é o estudo de um personagem inserido no contexto patriarcal que premia seus mantenedores/perpetuadores com regalias sociais – como não ser devidamente investigado, ter a proteção dos pares e ganhar vantagens ao duelar com uma acusadora criança/mulher. Mesmo que aparentemente dê uma guinada de 180 graus com a entrada em cena de Nuray (Merve Dizdar), o filme cria a partir disso outra dinâmica interessante, inclusive por continuar destrinchando a personalidade desse protagonista definido pelo exercício de poder como um demarcador social. Portanto, a crise com a aluna e o triângulo amoroso respondem por questões complementares. Primeiro, Samet se interessa muito pouco pela professora ideologicamente progressista que perdeu parte da perna em ação. Segundo, a sugere como interesse amoroso ao amigo (não sem deixar de debochar dele por ser refém das tradições). E, terceiro, volta a se interessar por Nuray como indício dessa necessidade de medir forças com um adversário para demonstrar poder. Por mais que certos diálogos pareçam vagos/banais, supostamente pouco agregando a essas tensões que eletrificam a narrativa, eles servem para que não nos escape a complexidade das pessoas e das circunstâncias. Além disso, ainda que soe meio gratuita a breve quebra da ilusão cinematográfica pela revelação dos bastidores, o gesto é muito forte e bonito.
Filme visto durante a 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (2023)
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Na realidade, o filme é enfadonho, ao substituir as imagens pelas palavras - um nouvelle vague turco velho de meio século. Ceylan quer dizer demais ao misturar a hierarquia escolar, a sala de aula, o vilarejo do interior, as relações de amizade, a traição e o sexo, a sedução infantil e a possível pedofilia - tudo isso no mesmo baú. Parece modesto, mas é um filme excessivo. E, a meu ver, hipócrita, ao criar lindas imagens no verão ao por do sol (baita contraste com a escuridão e a neve de todo o filme até então) para aparecer no fim com mensagens sentimentais, que criem um verniz sedutor onde sobrou monotonia e repetição. Nota 4.