Crítica
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Sinopse
Bram é um jornalista recém-formado e cheio de ambições. No entanto, se frustra com o primeiro emprego, que não permite a proposta de nenhuma pauta ambiciosa. Um dia, recebe por acaso uma ligação indicando que o prefeito de Toronto está envolvido num escândalo capaz de conduzir ao impeachment. Apesar da resistência dos chefes, continua investigando o caso por conta própria. Do outro lado da cidade, os jovens assistentes do prefeito fazem o possível para abafar a verdade e impedir que outras controvérsias venham a público.
Crítica
Um cenário de luz verde. Jovens falam rapidamente, gritam, interrompem as deixas uns dos outros. A câmera salta rapidamente entre os rostos, volta ao personagem anterior, dá um close na cerveja segurada por um deles, abre o enquadramento de volta ao rosto. Um cenário completamente amarelo. A trilha sonora pulsante imita batidas violentas, ou talvez batimentos cardíacos. Outro cenário, desta vez vermelho, e depois outro azul-rosa-neon. A tela se divide em dois, em três, em cinco, seis, sete blocos que se movem, aumentam ou diminuem, enquanto os personagens dentro de cada bloco falam ao mesmo tempo, cortando uns ao outros, e a trilha de batidas se sobrepõe à fala de todos. Letreiros intermitentes, legendas em cor salmão para as falas em língua estrangeira. Escândalo Municipal (2019) é um filme repleto de estilo, no sentido mais imediato da palavra: cada cena é decorada com filtros, sobreposições, fragmentações, ações em tom de urgência, diálogos longuíssimos e velozes. As pessoas correm de um lado para o outro, em mistura de pressa e medo, como se estivessem sendo perseguidas por alguém.
Por meio de recursos são agressivos, o diretor estreante Ricky Tollman busca imprimir tensão, e não há dúvida que conheça os recursos necessários para tal. Estranha-se, no entanto, que utilize todas estas possibilidades ao mesmo tempo, como se não confiasse no suspense inerente à própria premissa. O drama é baseado no escândalo real de Rob Ford, prefeito de Toronto flagrado em um vídeo fumando crack em 2013. Conforme a prefeitura tentava abafar o caso, outras polêmicas relacionadas ao político apareciam, incluindo casos de abuso sexual, embriaguez e violência contra funcionários. A semelhança com o caso verídico – os personagens conservam os nomes reais, e têm aparência próxima às pessoas mencionadas – tornaria a premissa ainda mais tensa. Mesmo assim, o cineasta embute um sem-número de recursos estilísticos que nunca param de chamar atenção a si mesmos. Quem trabalha num escritório verde-bile, e depois pega o carro numa garagem vermelha-escura-cor-de-casa-noturna? Como o espectador pode concentrar na evolução gradual da controvérsia enquanto a imagem se fragmenta em tantas partes, e os gritos dos personagens se acumulam? Estamos diante de uma estética da saturação e do déficit de atenção.
O projeto comete a falha conceitual de confundir nervosismo com dinamismo, e cinismo com olhar crítico. Com exceção do protagonista Bram (Ben Platt), rapaz de incompreensível ingenuidade e amadorismo, os demais personagens são sarcásticos, brutais e antipáticos em suas falas. Não há variação: cada conversa com os chefes da redação resulta numa troca afiada de humilhação e piadas sexuais; cada imagem de Rob Ford se traduz num espetáculo grosseiro de machismo; cada conversa com a irmã de Bram termina em provocações. Do lado dos assessores, Kamal (Mena Massoud), Ashley (Nina Dobrev) e Joshua (Araya Mengesha) competem pelas falas mais mordazes e mais velozes. Alguns diálogos são tão extensos que representam um verdadeiro desafio fisiológico aos intérpretes, impedidos de respirarem até o final da frase. Tollman deve apreciar muito o estilo verborrágico consagrado por Aaron Sorkin, além da denúncia política transformada em espetáculo midiático, nos moldes de O Escândalo (2019). O diretor pretende mostrar que a política e a mídia constituem terrenos de guerra, onde não há amor ou amizades, apenas breves alianças por conveniência. Kamal chega a pedir Ashley em casamento sem que qualquer cena indique uma relação amorosa entre eles, para em seguida embarcar numa ríspida troca de insultos com a futura noiva. Por que perder tempo com o namoro se você pode se dedicar à briga?
Sequências como esta demonstram a dificuldade do cineasta em trabalhar passagens de tempo e mudanças de espaço – dois fatores essenciais para um drama linear, baseado em fatos, e articulado entre duas tramas paralelas (a acusação dos jornalistas contra a defesa dos assessores). Na cena seguinte após o ingresso de Bram no jornal, o personagem reclama: “Estou trabalhando aqui há um ano e não posso propor nenhuma pauta!”. Ora, o espectador jamais acompanha a passagem de um ano inteiro. Logo após encontrar um informante com fotos comprometedoras sobre o prefeito, a chefe (Jennifer Ehle) reclama da demora de três semanas para ter uma resposta sobre o caso. As casas, redações e bares se alternam sem que o espectador saiba ao certo se ainda estamos no mesmo dia, ou meses mais tarde. A saturação de efeitos e o estilo intervencionista se traduz de maneira exemplar na composição de Rob Ford. Para representar o prefeito obeso, o diretor selecionou o atlético Damian Lewis, para então colocar no ator uma “fantasia de gordo”, ou seja, barriga postiça, uma intensa papada (mais volumosa do que aquela do político real), bochechas gigantescas e rosadas. O trabalho de maquiagem é tão grosseiro que Ford se converte num boneco de stop motion, na caricatura do personagem real.
Tollman não se contenta em criar um personagem antipático, assediador, machista e violento: ele transparece o repúdio por meio da aparência monstruosa. Desde as próteses assumidamente ridículas de Ed Murphy, Martin Lawrence e Marlon Wayans em comédias besteirol não se via uma caracterização tão vulgar do corpo gordo enquanto sinônimo de asco. Outros problemas éticos se introduzem no projeto, em particular a decisão de poupar o espectador do vídeo de Ford fumando crack, mas revelar, ao vivo e com direito a planos de detalhe, o abuso sexual cometido pelo prefeito bêbado, em frente a toda a redação. Escândalo Municipal não se interessa por nada que não possa virar um show de horrores. O discurso se assemelha àquele dos homens embriagados nos bares, gritando aos quatro ventos que o mundo está perdido, que ninguém mais tem valores. Esta constatação simplificada da decadência, em cenas multicoloridas e picotadas, transparece o conformismo em relação aos problemas que pretende denunciar, visto que jamais se investiga as causas do problema, nem mesmo o desfecho do episódio. O alarmismo feito de falsas equivalência (“político é tudo igual”, “ninguém presta”) se converte num olhar perigoso à política, além de nocivo ao cinema enquanto veículo de representação. Diante de um importante caso real, o diretor privilegiou o registro exasperado de sensações ao invés do convite à reflexão.
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