Crítica
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Sinopse
Como forma de celebrar o seu amor, Georges e Camille dançam Mr. Bojangles, de Nina Simone. Esse relacionamento tem espaço apenas para diversão, amores e amigos. Mas, algo coloca em risco essa festa perpétua.
Crítica
Nos contos de fadas, o momento mais otimista geralmente é o último, o clássico “final feliz”. Em Cinderela, por exemplo, a Gata Borralheira come o pão que o diabo amassou até encontrar a felicidade nos braços do Príncipe Encantado, não sem antes ter a sensação de que falhou ao se aproximar da alegria. No fim das contas, tudo acaba bem e os amantes vivem felizes para sempre. Esperando Bojangles é uma espécie de conto de fadas, mas às avessas, nesse sentido da localização do bem-estar e da esperança. Tudo começa muito bem para o casal formado por Camille (Virginie Efira) e Georges (Romain Duris). Os dois se conhecem numa festa, se envolvem em meio ao desmascare dele como um mentiroso incorrigível e logo fazem juras de amor eterno numa transa romântica em pleno altar. Não parece existir força que detenha esse amor tão impulsivo quando incontornável, ilustrado com as cores quentes do figurino a cargo de Emmanuelle Youchnovski e fotografado com as lentes de Guillaume Schiffman. Se há algo de convencional nesse começo singular é sugestão da repetição de uma lógica bastante comum no cinema, dentro da qual a imprudência é um caminho sem volta à ruína. E, definitivamente, os protagonistas não são pessoas prudentes. Impulsivos, alegres e impetuosos, ambos realmente parecem feitos um para o outro. Mas, a realidade não tarda criar rachaduras na fábula de amor.
O cineasta Régis Roinsard tinha apresentado sua vocação por mundos visualmente próximos do artificial em A Datilógrafa (2012). Ele retoma o registro especialmente na primeira metade desse longa-metragem selecionado para o Festival Varilux de Cinema Francês 2022, justamente a que mostra o encantamento do sentimento blindado às feiuras da realidade. Camille e Georges se casam, dão festas animadas no apartamento minuciosamente decorado, dançam para celebrar a plenitude do elo romântico entre pessoas nada ortodoxas e dão de ombros para as cartas (as responsabilidades) que se avolumam na entrada do lar feliz. A pilha de papeis supostamente importantes serve como prenúncio: uma hora a bomba vai estourar, bastando-nos esperar para ver quando. Ainda nessa parte que podemos chamar de “a bonança”, Esperando Bojangles traz como figura essencial o menino Gary (Solan Machado Graner), o fruto dessa paixão amalucada e irresistível. O menino é estimulado pelos pais a ficar longe de uma lógica mais cartesiana de educação, ou seja, é recomendado a não cair demasiadamente numa “normalidade” que resulte em padronização. E o ator mirim se sai muito bem ao construir esse menino adorável que é incentivado a criar histórias alternativas quando a verdade se tornar dura demais. Porém, o filme mantém no horizonte a consciência de que não é possível ser sempre assim.
Principalmente à medida que deixa a abrasiva realidade estilhaçar a casca de fábula fascinante, Esperando Bojangles abre espaço para nuances e alguns assuntos importantes. Um deles é a saúde mental de Camille. De determinado ponto em diante, a imprudência observada como um indício de excentricidade é situada como sintoma patológico. Então, o longa ganha tons mais graves e pesarosos, como quando o menino se escandaliza ao ver a mãe sedada no manicômio ao ponto de não reagir à sua presença. O roteiro assinado por Régis Roinsard e Romain Compingt, com base num livro de Olivier Bourdeaut, vai propondo uma nova configuração de abordagem: a perspectiva principal não é mais a do casal, mas a do menino que precisa lidar precocemente com assuntos não aconselháveis à sua tenra idade. Infelizmente, algumas coisas se perdem nessa transição, como as tonalidades da personalidade de Georges (ele se torna apenas um homem atônito tentando lidar com a doença da esposa). Aliás, Georges rapidamente deixa de exibir a sua mitomania característica, ainda que mantenha um aspecto sonhador e irresponsável. Gary testemunha o pai ruindo e a mãe colapsando, resultados da inconsequência que anunciava uma tragédia desde o começo. Uma pena que o filme seja determinista ao aderir em parte ao chavão cinematográfico da imprudência a ser castigada, em parte à dureza da realidade.
Régis Roinsard poderia fazer de Esperando Bojangles uma fábula em que a tristeza é vencida pela felicidade que prevalece no fim dos contos de fadas. Porém, prefere o inverso, ou seja, começar com a alegria e terminar com notas melancólicas. Desse modo, elege a realidade como instância da qual não se pode escapar, mesmo quando o lúdico é bem mais convidativo. Virginie Efira e Romain Duris merecem elogios à parte pela construção de personagens tão singulares. Ela desenha Camille como alguém magnética e imprevisível, uma daquelas pessoas trágicas de quem o cinema aconselha distância após um primeiro momento de paixão avassaladora. Não fosse a doença mental, ela seria basicamente outra força da natureza ao mesmo tempo exuberante e destrutiva, como um furacão. Já ele compõe esse trambiqueiro de marca maior com certos rompantes de adequação, mas que segue disposto a tudo para fazer a esposa feliz. A cena dele tirando a roupa para acompanhar a cônjuge nua andando pela rua (quando se esperava uma reprimenda) reforça as características da paixão desvairada. Pode-se dizer que o filme estabelece uma tensão entre a imaginação e a realidade, situando uma como infinita e a outra como naturalmente áspera. Se embaralhasse melhor as fronteiras entre elas e não perdesse detalhes pelo caminho, Roinsard poderia ter feito algo mais grandioso e profundo.
Filme assistido durante o 13ª Festival Varilux de Cinema Francês, em junho de 2022.
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