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Sinopse

O policial Zeke sempre viveu à sombra do pai, um dos mais respeitados membros da polícia local. Quando uma série de assassinatos na cidade visa especificamente os agentes da lei, percebe-se que o responsável está copiando as técnicas de tortura do falecido Jigsaw. Zeke assume a dianteira das investigações, temendo se tornar o próximo alvo.

Crítica

Existe um aspecto curioso na maneira como Espiral: O Legado de Jogos Mortais (2021) brinca com as convenções tanto do filme de investigação quanto do terror gore. No gênero policial, a trama está repleta de detetives inteligentíssimos, capazes de deduções instantâneas: Fitch (Richard Zeppieri) observa alguns segundos da gravação de uma câmera de segurança, onde vê um sujeito inteiramente mascarado e maquiado, e afirma: “Eu sei quem é. É o Billy! Vamos!”. Assistindo ao início de um vídeo, Zeke (Chris Rock) aponta para a parede escura de um beco e declara: “Eu reconheço isso aqui. São os fundos da delegacia. Vamos!”. Mais tarde, o logotipo de uma loja remete a uma foto antiga, e depois aos fundos de um comércio, graças à perspicácia da equipe. Outro vídeo curto, de menos de um minuto, é reproduzido para um grupo de policiais. Ao sinal da primeira pista, todos saem correndo desesperados porta afora. As imagens restantes continuam tocando sozinhas, para ninguém. Visto a astúcia destes investigadores, impressiona a ineficiência em resolver os crimes. A exemplo das produções anteriores da saga Jogos Mortais (2004 - 2017), a pessoa responsável pela matança simplesmente revela sua identidade no final, explicando por que cometeu cada uma das mortes. Talvez os policiais afobados devessem assistir aos vídeos até o final, pensando um pouco mais antes de agir.

No entanto, o fracasso da investigação se deve ao confronto com as convenções do terror. Esta forma de morte por tortura exige uma facilidade sobre-humana das ações. O novo assassino, inspirado nos procedimentos do Jigsaw, desenvolve traquitanas elaboradas, de alta tecnologia e criatividade, para torturar cada uma de suas vítimas. Jamais se descobre de que forma esta pessoa conseguiu financiar, elaborar e instalar os dispositivos nos locais escolhidos. As presas humanas são capturadas sem esforço, tendo seus dedos, língua e outras partes do corpo cuidadosamente comprimidos entre prensas metálicas e outras ferramentas. O espectador chega ao espetáculo quando o palco está devidamente decorado, armado e pronto para funcionar. As máquinas jamais se quebram, nem são superadas pelas vítimas. Nota-se o fatalismo desta construção: uma vez escolhida a vítima, ela morrerá em seguida, com rapidez. O assassino consegue prever passos aleatórios de seus alvos, entrar em locais supersecretos e protegidos, tendo tempo de instalar uma máquina que despeja cera quente sobre a cara da vítima, ou um disparador de cacos de vidro. Esta figura sem rosto nem corpo (pelo menos, até a sequência final) se assemelha a um deus vingativo, dotado de onipresença e onipotência: ele se encontra em todos os lugares, sem deixar pistas.

A disposição de recursos tão artificiais – o vilão escolhe a maneira mais difícil de matar cada policial – resulta num dos elementos interessantes da narrativa: as semelhanças entre os mocinhos e o bandido. De certo modo, ambos se tornam diretores, elaborando uma mise en scène, escolhendo os personagens, a iluminação, o cenário e as ações. O herói Zeke despreza os manuais de boa conduta da polícia, preferindo criar suas ficções: ele se veste de bandido numa apreensão de drogas, e depois lança um dispositivo próprio que estoura na cara do traficante. Esta iniciativa não difere muito daquela adotada pelo serial killer, desenvolvendo maquinarias para o prazer sádico do espectador. Espiral: O Legado de Jogos Mortais ressalta o aspecto cênico, seja ele circense ou teatral, das matanças estabelecidas previamente pela franquia. Preserva-se o falso dispositivo de escolha moral (“Você pode abrir mão de sua língua e seus dedos para continuar vivo”), porém o caráter reformador das punições permanece em segundo lugar. Agora, tanto os bonzinhos quanto os malvados se convertem em ilusionistas, seja pela capacidade de desparecer convenientemente (caso de Zeke e do pai Marcus, interpretado por Samuel L. Jackson), ou pela habilidade em sugerir um modus operandi fictício para as mortes (vide um esfaqueamento aleatório na rua, e uma tatuagem post mortem). O filme carrega maiores semelhanças com a saga Truque de Mestre do que com os roteiros anteriores de Jogos Mortais.

Esta receita poderia gerar uma experiência melhor caso os produtores não tratassem a obra como um filme B realizado às pressas. A montagem sofre para criar tensão durante as sequências de morte (jamais resta dúvida de que as pessoas sucumbirão aos aparelhos); o trabalho de iluminação provoca efeitos absurdos (um galpão azulado demais, outro equipado com um show de lasers), e os diálogos cheios de frases de efeito se aproximam do humor autorreferente. Em especial, a temporalidade soa confusa: Samuel L. Jackson interpreta o pai de Chris Rock, apesar da pouca diferença de idade entre eles. Nas cenas de flashback, a tentativa de rejuvenescê-los pelo figurino resulta em algo próximo da paródia. Max Minghella, ator de 35 anos, encarna um garotão inexperiente, propenso a gostar da saga Crepúsculo. Já a detetive interpretada por Marisol Nichols retorna num flashback de décadas atrás, vestindo as mesmas roupas, sem trabalho de maquiagem, nem qualquer sinal de envelhecimento. Além disso, a narrativa depende de reviravoltas incompreensíveis para avançar – caso de um celular pessoal emprestado, uma morte deixada sem investigação e as invasões recorrentes na delegacia. Talvez seja parte do princípio sádico de Jogos Mortais que os ataques sejam facilitados, ao limite da magia. Existe um caráter próximo do realismo fantástico na execução dos planos do vilão.

Coroando a aparência kitsch, levemente autodepreciativa (todas as franquias de terror caminham à comédia com o passar dos anos?), encontra-se a atuação maquínica de Chris Rock. Interpretando um sujeito machista e rebelde, ele limita qualquer emoção aos olhos espremidos: em caso de ódio, dúvida, medo, tristeza e surpresa, o ator apenas cerra os olhos o máximo possível. Algum editor pode se divertir, no futuro, em montar apenas as espremidas de olhar após as outras, reforçando o teor cômico do conjunto. Samuel L. Jackson brinca com sua persona violenta e divertida – os roteiristas, ao criarem algum personagem para o ator, automaticamente triplicam a quantidade de “motherfucker” nos diálogos -, e Max Minghella resulta no único ator a levar seu personagem realmente a sério. Ele se encontra tão bem em cena que destoa da abordagem dos colegas, mesmo do diretor Darren Lynn Bousman, adepto dos tiques de imagens inclinadas ou tremendo durante o acesso de fúria de Zeke. Por fim, o projeto remete a uma atração de parque de diversões – um trem fantasma onde as pessoas passeiam dentro de um carrinho sobre trilhos, assustando-se pelo caminho. Ao priorizar a escatologia à tensão, a franquia envereda pelo horror que prefere despertar nojo a suscitar o medo do espectador.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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