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Sinopse

Em Espumas ao Vento, uma tragédia acontece durante uma apresentação de uma trupe artística. E esse episódio redefine a vida de duas irmãs. Ambas convivem com os fantasmas do acontecido enquanto um pastor tenta expandir o seu rebanho.

Crítica

A exploração da religião enquanto meio manipulador das massas, principalmente das mais carentes e humildes, atingiu tal nível de absurdo e desfaçatez que cultos e pregações muitas vezes se aproximam mais de performances ensaiadas do que momentos de reflexão e fé. Portanto, a apropriação desse ambiente por um grupo de desgarrados teatrais não soa totalmente improvável. Da mesma forma, é sabido que lugares que lutam – sem sucesso – para se manterem enquanto atividades culturais de gosto popular acabam, cedo ou tarde, cedendo a um espírito colonizador e dominante da especulação imobiliária, resultando em igrejas improvisadas e assembleias de doutrinação como destino mais comum. Estas duas questões se veem postas lado a lado em Espumas ao Vento, o primeiro longa-metragem dirigido por Taciano Valério em quase uma década. Todo esse tempo afastado do exercício dramático cobra seu preço, e o que se vê na tela é uma obra fervilhante de boas intenções e temas relevantes, mas que reluta do início ao fim não apenas para encontrar um norte a seguir, mas também para conseguir encaixar com habilidade grande parte dos assuntos que tanto se esforçou em reunir.

Após o enigmático Pingo d’Água (2014), Valério deu por encerrada uma trilogia que incluía ainda Ferrolho (2013) e Onde Borges Tudo Vê (2012). Filmados em preto e branco, os três longas apresentavam características e elementos, tanto estéticos quanto narrativos, de forte teor dramático e distante de um olhar convencional e agregador. Esse viés autoral é em grande parte abandonado em Espumas ao Vento, um enredo de evidente caráter provocador, ao mesmo tempo em que estrutura sua narrativa a partir de personagens perdidos que precisam desesperadamente se encontrar. São histórias em paralelo, mas que, de uma forma ou de outra, estão destinadas a se cruzarem. Tanto pelas diretrizes da vida moderna, como pelos gestos de um que o afasta, assim como o aproxima, do outro. Um movimento paradoxal, porém peremptório, de repulsa e atração. Seria de se esperar, no entanto, que o evento que terminará por ligar esses dois extremos fosse visto de forma mais radical. Mas o que se vê em cena é uma flexibilização desse discurso, de maneira tal que os envolvidos acabam por se cobrir de um manto de artificialidade, abandonando um mergulho que poderia tê-los afastado do estereótipo.

Manu (Rita Carelli) e Ana (Patrícia Niedermeier) são irmãs ligadas à sina artística da família. Juntas do pai (Everaldo Pontes, ator-fetiche do cineasta), do tio e da esposa desse, levam uma trupe de palhaços e titereiros. São mamulengueiros, e como tal se assumem, exibindo uma maestria um conhecimento que vai desde a confecção dos fantoches, até o ato de empunhá-los, com destreza e habilidade, frente a plateias encantadas e curiosas. Numa dessas apresentações, sem se darem conta, ferem os brios de um homem tomado pela cegueira emburrecedora daqueles que só ouvem o que lhes é dito, sem questionamento ou reflexão. Com a cara pintada de palhaço, o braço direito de um pastor evangelizador se infiltra na audiência para descobrir como tomar aquele espaço para si e fazer deste cenário um novo centro catequizador. A arte, no entanto, dele toma conta, que se vê levado a um universo de fantasia e excitação. Uma viagem que acaba de forma abrupta ao ser confrontado consigo mesmo. Da revolta que dele toma conta, uma arma ganha pulso e é disparada. O que era não mais existe, e é preciso se reinventar.

Essa partida toma conta dos dois lados da questão. Aqueles que foram quebrados, precisam lamber feridas e juntar pedaços longe de tudo e todos. Manu e Ana se recolhem em um sítio da família, no interior, isoladas, abrindo espaço para uma nova discussão: a “peste” (alusão à pandemia do Covid-19) as obriga a usar máscaras e buscar cilindros de oxigênio, ao mesmo tempo em que se veem tendo que lidar com a morte, que não as abandona. Estão descobrindo como sobreviver, e se o esforço empregado para tanto, de fato, é válido. Já o que provocou o rompimento se vê incapaz de lidar com a própria culpa, e não mais atento às diretrizes religiosas, irá traçar seu próprio plano de vingança e libertação. São pontos de vista intrigantes, e acima de tudo, válidos. Mas falta liga entre um ponto e outro. A maneira como acabarão se unindo requer elementos de maior força, pois se dão não apenas de modo leviano, mas improvável. O envolvimento de um, o sequestro daquela, os seguidores que surgem em um ônibus no meio da noite, nada parece fazer muito sentido. Eis, enfim, a legítima representação de um “rolê aleatório”. Deve ter parecido lógico em algum momento, não há dúvidas. Mas, entre a ideia e a realização, o caminho é longo, e por vezes repleto de atalhos e contornos. Muitos desses, capazes de levar a lugares nem de perto semelhantes aos imaginados no começo da caminhada.

Se tanto Pontes quanto Mestre Sebá, que interpreta o tio, estão presentes mais pela representatividade extra-fílmica que carregam, pois a dramaturgia lhes reserva uma exibição limitada, Carelli se vê resignada numa composição de dor e perda, enquanto Niedermeier é que se permite dar voos mais longos, tanto pelas amarras soltas de sua personagem, como pela falta de conexões que exibe ao longo dos acontecimentos. Falta peso em sua decisão de dar adeus, mas esse é um problema maior do roteiro, e não da intérprete, que está entregue a uma figura trágica desde o princípio. Ainda assim, a grande revelação é Odécio Antonio, o pseudo-pastor que faz do rosto pintado com nariz vermelho uma nova identidade. Ele tanto envolve quanto assusta, desfilando um carisma que vai do submisso ao selvagem. É de se lamentar, portanto, que mesmo talentos como esses não sejam suficientes para fazer de Espumas ao Vento uma experiência transformadora. Há muito a se discutir a seu respeito, e os primeiros instantes da trama, por tudo que prometem, são inegavelmente promissores. Mas a falta de um rumo claro termina por afundar tais pretensões, gerando algo de forte alicerce, mas frágeis pretensões.

Filme visto em Brasília, durante o 55º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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Robledo Milani
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Maria Caú
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