Crítica


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Sinopse

Sob a superfície do lago Nahuel Huapi repousa um monstro. Nos arredores do lago, que fica próximo a Bariloche, nos Andes argentinos, existe outra criatura, chamada Capa Negra. Responsável por assombrar as pistas de esqui à noite, ela deve ser evitada a qualquer custo.

Crítica

A cidade de Bariloche, na Argentina, abriga a maior estação de esqui da América Latina. Para retratar a importância deste local, o cineasta Manque la Banca, nascido em Bariloche, decide que fatos, entrevistas ou materiais de arquivo não seriam suficientes. Ele se apropria do real como mero ponto de partido para um mosaico de citações, evocações atmosféricas e lendas fantásticas associadas à região. Para o criador, este local se torna um universo parcialmente conectado com o resto do mundo (via política e sociedade argentina), e parcialmente compreendido enquanto microcosmo independente, dotado de regras próprias. Esquí (2021) se converte numa mistura inesperada entre documentário, obra experimental e evocação fantástica de uma montanha coberta de neve. Nenhum recurso é descartado dentro desta abordagem alegremente caótica: tanto os depoimentos de turistas quanto reconstituições trash de um suposto monstro são incorporadas ao longa-metragem onde a forma se torna conteúdo. Aqui, a imprevisibilidade constitui um objetivo em si.

O efeito é tão criativo e inesperado quanto superficial. O autor utiliza uma infinidade de estilos e recursos, porém nenhum deles se desenvolve o bastante antes de ser substituído pelo próximo. Há reflexões de ordem social (os trabalhadores pobres, a dificuldade de acesso ao esporte de elite por parte dos habitantes da cidade), histórica (a construção burguesa se sobrepondo ao patrimônio cultural) e pedagógica (a importância do esporte no desenvolvimento das crianças). Estes elementos de ordem analítica se combinam com cenas de cadáveres na água, ateliês de reparação de carros, ensaios fotográficos queer onde o diretor expõe suas nádegas peludas na neve, pedras gigantescas na beira de cachoeiras, conversas com austríacos sobre as origens do esqui, manuais de instrução a respeito do uso de equipamentos, erros de gravação, making of, repetições de ações e imagens, câmeras lentas, cenas de protestos em preto e branco, flashes de película queimada, dissociação de som e imagem, zooms extremos até o limite da abstração, além de trilhas sonoras alteradas no meio de uma imagem, tornando o esqui ora divertido, violento ou apático. Dezenas de recursos poderiam ser acrescentados à lista, dentro de modestos 75 minutos de duração.

A construção incomoda pelo senso de aleatoriedade. Todas estas abordagens seriam igualmente legítimas, no entanto, o cineasta precisaria se deter em algumas delas caso desejasse se aprofundar no potencial estético e narrativo de sua proposta. Uma sessão de Esquí se assemelha à troca frenética entre estações de rádio, saltando do pop ao rock, ao gospel, ao jornal informativo, ao programa humorístico, à música clássica e assim por diante. O imperativo da mudança se converte em única forma de coesão possível, dentro de uma obra incapaz de estabelecer relações produtivas de causa e consequência, ou ainda de desenhar algum senso de finalidade no discurso como um todo. A alienação representada pela estação se esqui aparece nos minutos finais, enquanto um pensamento acrescentado às pressas. Ora, mais importante do que a beleza dos fragmentos teria sido o significado criado a partir da junção entre eles. É precisamente na montagem, ou seja, na articulação entre pensamentos, que o projeto se enfraquece: as cenas parecem se opor umas às outras, ao invés de elaborarem um caminho coerente. A narrativa se move pela negação da produção de sentidos.

Obras como esta despertam questionamentos para além da representação do tema, chegando ao conceito de liberdade artística enquanto direito a certa inconsequência criativa. A Mostra Forum, seção dedicada a novas elaborações de forma e linguagem dentro da Berlinale, trouxe em 2021 projetos particularmente dispersos, que não exploram pontos específicos da linguagem, apenas se abrem a um cinema-brainstorming, uma construção onde tudo vale, e todo tipo de evocação merece habitar a mesma obra. Trata-se de um gesto conceitual, uma expressão de autoria agressiva que, em recusa à estrutura clássico-narrativa, busca seu exato oposto. Cinema experimental nunca foi sinônimo de caos, nem de descaso com a forma: basta ver o belo Se Hace Camino al Andar, de Paula Gaitán, perfeitamente coeso e interessado em pesquisas muito pontuais de ritmo e movimento de câmera. Já a iniciativa de Manque la Banca se aproxima de uma concepção pop, e também mais egocêntrica, da criação audiovisual. Não faltam ideias ao filme, nem a coragem de inventar – pelo contrário. O resultado se ressente de uma vontade de comunicação, ou de uma proposta de debate ou discurso: a construção em modo shuffle se inicia e se encerra em si própria.

Filme visto online no 71º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em março de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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