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Crítica

Aracy Moebius de Carvalho (1908-2011) era uma mulher de coragem. Recém-divorciada do marido (com quem teve um filho), saiu do Brasil em 1935 para morar com uma irmã na Alemanha, levando consigo a criança. Quem sabe um pouco de História entende que o período em questão não era dos mais calmos naquele país. Com a Segunda Guerra Mundial a pleno curso, Aracy foi contratada para servir como chefe da seção de passaportes em Hamburgo. Foi nesta época que conheceu seu segundo marido, João Guimarães Rosa, diplomata que viraria um dos nossos grandes escritores. Em seu trabalho, ela ajudou diversos judeus a desembarcar no Brasil, à revelia de sua chefia. Existia uma lei que restringia a entrada deles no país, mas Aracy usou de seus artifícios para conseguir fazer com que pelo menos uma centena de judeus fugisse da Alemanha.

Por esta sua incrível iniciativa, ficou conhecida como o Anjo de Hamburgo, e seu nome está registrado em Israel, no Jardim dos Justos entre as Nações, no Museu do Holocausto. Falecida em 2011, aos 102 anos de idade, doente do Mal de Alzheimer, Aracy acabou caindo no esquecimento. Por isso, é inegável a importância de um filme como Esse Viver Ninguém me Tira para relembrar a fantástica história daquela brava mulher, bela estreia do ator Caco Ciocler como diretor.

Para contar a jornada de Aracy, Ciocler e os roteiristas Caroline Leone, Mariela Falatycki e Alessandra Paiva buscam nos fragmentos de memórias de pessoas que conheceram a retratada, ou foram ajudadas por ela, pistas para reconstruir aquele passado. A equipe do documentário consegue não cair em armadilhas fáceis. Seria tentador colocar João Guimarães Rosa em destaque, costurando sua trajetória com a de sua esposa. Mas não é isso que Caco Ciocler faz. Talvez até por já existir filmes que contam esta passagem pela Alemanha de Guimarães Rosa, como é o caso de Outro Sertão (2012), de Adriana Jacobsen e Soraia Vilela, Esse Viver Ninguém me Tira apenas cita o escritor, mas não tira o foco de sua principal retratada.

De forma minuciosa, Ciocler e equipe buscam pessoas que conviveram com Aracy – desde a enfermeira que tomou conta da idosa senhora, passando pelo filho Eduardo Tess, amigos – como o político Plínio Arruda – e admiradores – como a jornalista Eliane Brum. Na segunda metade, o filme aponta para as famílias salvas pelo Anjo de Hamburgo, em depoimentos emocionantes.

Ainda que o documentário acabe parecendo bastante convencional em uma primeira análise – com as tradicionais cabeças falantes costurando a história – o diretor se inclui no filme, colocando suas experiências como judeu, sua viagem a Israel (indo ao Muro das Lamentações) e incluindo uma curiosa autocrítica a respeito de sua fé, lá pelo final do longa-metragem. Essa presença do autor, longe de ser uma forma de roubar a atenção para si, mostra as razões pelas quais Ciocler se interessou pela história de Aracy, fato que pode ajudar o público em geral a também se embrenhar nesta jornada.

Esse Viver Ninguém me Tira se recente da parca memória do nosso país, mostrando diversos furos na história que talvez nunca possamos preencher. Ainda que exista um arquivo de pertences de dona Aracy, os itens encontrados não são suficientes para contar toda sua trajetória. Desta forma, Caco Ciocler preenche estas lacunas com as já citadas passagens pessoais, e momentos em que a retratada ganha voz, através de cartas e bilhetes escritos por ela.

Bela homenagem a uma figura importante para a nossa história, o documentário tem bons depoimentos, que nunca deixam a trama cair. Poderia ser mais didático, já que escolhe por uma narrativa convencional. De qualquer forma, o doc consegue seu intento de deixar para a posteridade quem foi Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa, o Anjo de Hamburgo, despertando a curiosidade do espectador e mantendo-o interessado a cada novo desenrolar da história. E esse mérito ninguém tira.

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