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Sinopse

Aos 85 anos de idade, André sofre um derrame que o deixa semiparalisado. A filha Emmanuelle, uma romancista renomada, corre para ver o pai no hospital, quando escuta um pedido inesperado: ele deseja encerrar sua vida. Caberá a Emmanuelle decidir o que fazer a partir desta solicitação dolorosa.

Crítica

Este drama parte de uma curiosa e importante atenção aos detalhes. Desde a cena inicial, quando Emmanuelle (Sophie Marceau) descobre que o pai sofreu um derrame e está no hospital, ela precisa colocar as lentes de contato para sair de casa. A direção dedica alguns minutos para revelar a mulher saindo de casa, enxergando os degraus embaçados, voltando, colocando as lentes olho por olho. Em seguida, o pai doente morde um sanduíche, mas deixa a maior parte do lanche intacta. A filha guarda este objeto precioso, leva para casa, coloca numa sacola, deixa na geladeira. Ocasionalmente, reencontra o lanche mordido. Cada vez que a câmera se vira a André (André Dussollier), com o corpo semiparalisado, a imagem se concentra na mão esquerda, imóvel. O homem pode estar levantando um copo d’água com a mão direita, porém o olhar se atém àquela impossibilitada de se mover. Há dezena de símbolos inesperados de precisão e metodologia em Está Tudo Bem (2021). Apropriando-se de um tema tão potente quanto a eutanásia, surpreende que o cineasta consagre diversas sequências às pequenas simbologias do cotidiano. Estes indícios permitem diluir o aspecto sentimental da jornada: os personagens choram bastante ao longo da trama, porém o espectador nunca é convidado a chorar com eles. Evita-se com elegância a exploração da miséria alheia.

As repetições de instruções no uso de objetos também contribuem a enxergar na eutanásia um processo burocrático, exigindo uma infinidade de documentos, formulários, consultas, viagens, medicamentos, autorizações. Ao invés de tomar a morte voluntária por um fato adquirido, o diretor se volta ao desgaste provocado entre a decisão de terminar a vida e o momento exato de fazê-la. Apesar das dores de ambos os lados, filha e pai discutem com uma placidez inesperada os arranjos necessários: eles escolhem um dia conveniente na agenda de todos, discutem o melhor transporte até o centro na Suíça, confirmam formalidades com o advogado. A certa altura, parecem efetuar o contrato de compra de uma casa, o que justifica o misto de fascinação e incômodo diante desta abordagem singular. Teria sido fácil, e mesmo óbvio, privilegiar a perspectiva moral, religiosa (trata-se de uma família judia) e política da questão. Ora, François Ozon apela à aventura burocrática ao longo da qual os sentimentos se extravasam — há inúmeras passagens de Emmanuelle e a irmã Pascale (Géraldine Pailhas) se levantando abruptamente e deixando a sala para chorar. O impacto psicológico dos procedimentos legais tem interessado cada vez mais ao diretor que representou os trâmites para denúncias de pedofilia na igreja em Graças a Deus (2018) e o julgamento de um possível assassinato em Verão de 85 (2020).

Enquanto André prepara sua morte, a vida ao redor continua. O belo roteiro aposta na ironia triste de perceber que a partida de um indivíduo pode passar despercebida pelo mundo ao redor: a mãe ainda tem questões de trabalho a resolver; o sobrinho se prepara a um recital de música; colegas de galerias de arte debatem as próximas exposições; a mãe idosa (Charlotte Rampling) possui seus próprios problemas de saúde. O aspecto de normalidade diante de morte se traduz numa estética simples, ao limite do academicismo: Ozon opera com close-ups e planos de conjunto convencionais, colocando os rostos no centro do enquadramento, diante de fundos invariavelmente azuis e semelhantes. Os figurinos são discretos, as luzes deixam a impressão de dias sempre nublados. Em outras palavras, a estética se recusa a tratar seu objeto de estudo de maneira espetacular, nem rouba as atenções para si. O francês se dedica a um pequeno “filme de personagens”, de ambições humanas importantes, porém ambições cinematográficas modestas. O autor é plenamente capaz de explorar o kitsch e o extravagante quando o deseja. Aqui, restringe-se à posição do observador cúmplice, evitando os julgamentos morais diante do pai raivoso e da filha rancorosa. Tamanha discrição pode significar uma bem-vinda humildade ou uma questionável frieza, dependendo do ponto de vista.

A disposição do elenco constitui outro ponto de interesse. Para uma de suas obras mais contidas, o autor escolhe uma atriz conhecida por várias qualidades, menos a contenção: Sophie Marceau. Ela se esforça para entrar neste mundo de pequenas mágoas expressadas por um respiro profundo ou uma sobrancelha erguida. Às vezes, deixa escapar os gestos amplos que lhe servem tão bem aos romances e às comédias, mas, em geral, segura-se num registro internalizado. Uma centena de atrizes se encaixariam neste papel melhor do que Marceau, no entanto, nota-se o prazer de Ozon em calibrar atores e atrizes contra seus estilos habituais: vide o papel da humorista Alexandra Lamy no dramático Ricky (2009), Catherine Deneuve como a “loira burra” de Potiche: Esposa Troféu (2010) e Romain Duris no papel da mulher transexual em Uma Nova Amiga (2014). André Dussollier, por sua vez, diverte-se com o sujeito brincalhão, ranzinza e violento, em preciosa variação apesar da forte maquiagem para sugerir a paralisia. Nos flashbacks da infância, 30 anos no passado, Dussollier e Rampling interpretam a si próprios com perucas jovens, num gesto que soa cômico, mas talvez se adeque à noção de uma memória afetiva capaz de distorcer os fatos. Os sonhos com a garotinha desejando atirar no próprio pai seguem o caminho da vingança simbólica — a filha, maltratada pelo pai tirano, pode se vingar retirando a vida do homem que, em contrapartida, pediu por isso. “Eu me pergunto se isso é amor ou perversidade”, questiona um personagem a respeito do pedido da eutanásia especificamente à filha que sempre desprezou. “Os dois”, responde Emmanuelle.

Está Tudo Bem se encerra na forma de um drama emocionante — não por fazer chorar, e sim pela capacidade de deixar o grito preso na garganta. Neste aspecto, o título brasileiro perde sua força: o original, “Deu Tudo Certo” ou “Tudo Correu Bem”, em tradução literal, reforça o verbo no passado, fundamental aos acontecimentos da trama. Não se trata da obra mais engenhosa, delirante, com as melhores atuações ou representações mais instigantes da prolífica carreira do autor. Ora, talvez seja injusto exigir um teor semelhante em cada novo longa-metragem. Ozon oferece um projeto austero, competente em suas intenções discursivas e respeitoso quanto à religiosidade, à sexualidade e às leis de ambos os países envolvidos: França e Suíça. Sequências rápidas a exemplo do relógio entregue ao namorado e o corpo caindo sobre o cunhado no corredor indicam o caráter sentimental que poderia decorrer da mesma premissa, caso os criadores o desejassem. Ora, o diretor efetua aquilo que se costuma chamar de “obra menor”, num sentido afetuoso ou pejorativo, a gosto. De qualquer modo, ele limita a quantidade de personagens e cenários, pulando rigidamente entre datas-chave indicadas didaticamente através de letreiros na tela. Para quem espera da proximidade da morte uma forma de desespero ou perda de razão, o drama fornece uma estrutura rigidamente organizada.

Filme visto no 12º Festival Varilux de Cinema Francês, em novembro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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