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Sinopse

A cada ano, mais de 20 milhões de jeans são produzidos em fábricas de fundo de quintal em Toritama, no agreste de Pernambuco. Os moradores locais trabalham sem parar, orgulhosos de serem os donos do seu próprio tempo. Durante o Carnaval, eles transgridem a lógica da acumulação de bens, vendem seus pertences sem arrependimentos e fogem para as praias em busca de uma felicidade efêmera.

Crítica

O que de mais imediato há, dentro da pessoalidade inerente ao conjunto, em Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar é a constatação da transformação da paisagem, outrora urbana e atualmente industrial, da pequena cidade de Toritama, no interior do Pernambuco. A responsabilidade por cerca de 20% da produção nacional de jeans é algo ostentado com orgulho por certo vendedor local. O fato fica ainda mais impressionante ao sabemos que o resultado laboral é obtido por menos de 40 mil pessoas. O cineasta Marcelo Gomes conduz tudo com pitadas de proximidade, remontando às suas visitas infantis ao cenário que, de acordo com tais declarações, mudou radicalmente por meio da ascensão da atividade produtiva semelhante à monocultura agrária, ou seja, absolutamente perigosa àquela economia. Se, por alguma flutuação do mercado, por exemplo, a demanda caísse vertiginosamente, o município inteiro provavelmente entraria em colapso por falta de alternativa. Tal certificação permanece subentendida, não sendo vulgarmente verbalizada.

Aliás, Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar oscila entre observações implícitas e outras explicitadas, ora pela narração, ora pelos personagens que oferecem ao longa seus testemunhos. Em meio à valorização da mecanicidade dos gestos cotidianos, o documentário escrutina os efeitos colaterais do capitalismo, aqui especialmente perverso por conta da camuflagem de malefícios em pretensas benfeitorias. Toritama possui grandes fábricas, mas também diversas pequenas confecções, chamadas sintomaticamente de facções. Em praticamente todos esses negócios os proprietários demonstram alegria pelo fato de serem “donos do próprio nariz”, não condicionados por relógios-ponto ou algo que os valha. Forçados pela necessidade de produzir em larga escala, esses empresários “independentes”, porém, encaram jornadas desumanadas, assim permanecendo falsamente contentes por uma autonomia, no mínimo, bastante relativa e desprovida de valor.

Marcelo Gomes deflagra o funcionamento das engrenagens insensíveis que espremem trabalhadores em prol da manutenção de uma saúde econômica. Todavia, rapidamente os postulados essenciais ao documentário se estabelecem, com valiosa substância, restando ao cineasta, que visa dilatar e variar a experiência, o enxerto das deambulações pelas memórias e as demonstrações pontuais de desgosto com a transmutação de Toritama num indicativo emblema da voracidade do mercado, esse monstro de apetite insaciável. Ainda que bonitos, beiram a gratuidade os instantes em que ele reflete acerca do ontem romântico, bem como o no qual deliberadamente foge ao âmbito rural para respirar novamente os ares pacatos da vagareza, inexistentes na urbe demarcada pelo barulho ensurdecedor das máquinas. Leo, o melhor personagem do filme, ganha um espaço compatível com sua representatividade. Isso, além da energia e do carisma magnético que acabam sobressaindo.

Estou Me Guardando para Quando o Carnaval Chegar tem um miolo repetitivo, em parte por conta do imediatismo eficiente com que faz o diagnóstico denso e sensível de uma coletividade escravizada, ainda que aparentemente contente com o fato de supostamente segurar as rédeas do dia a dia. A linguagem proposta por Marcelo Gomes é despojada, com um bem-vindo arejamento das cenas pelas ocorrências imprevistas e por eventuais sobreposições de depoimentos. Quando próximo ao fim, no que se poderia compreender como seu último terço, o documentário sublinha com potência uma característica que trata de adicionar camadas consideráveis ao retrato construído. Ao se deparar com o êxodo no Carnaval, quando os moradores deixam para trás a rotina incessante para aproveitar a folia de Momo no litoral mais próximo, é particularmente perturbador o vislumbre de gente se desfazendo de bens a fim de viabilizar as pequenas férias, sem a consciência de, com isso, ajudar a alimentar o círculo vicioso que anualmente os mantém cativos e operantes.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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