Crítica
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Sinopse
Depois de 25 anos de distância, dois pistoleiros se reencontram e compartilham memórias de um tempo de paixão. O rancheiro Silva cavalga pelo deserto a fim de visitar o seu velho amigo Jake, o atual xerife de Bitter Creek.
Crítica
Um homem, diante de uma demanda do presente, precisa lidar com uma decisão mal resolvida do seu próprio passado. Essa breve sinopse é adequada ao protagonista de Estranha Forma de Vida, mas se mostra ainda mais propícia ao seu realizador, Pedro Almodóvar. Vinte anos antes, o cineasta espanhol contava com dois Oscars na estante quando foi convidado a dirigir O Segredo de Brokeback Mountain (2005), oportunidade essa que deixou passar por não acreditar que conseguiria se expressar de acordo com a sua visão em meio às interferências dos executivos de Hollywood. Pois bem, décadas se passaram e, finalmente, ele tem um ‘faroeste gay’ para chamar de seu. E por mais que tenha elementos tanto de um (faroeste) quanto de outro (gay), a questão no centro das atenções diz mais respeito aos sentimentos destes personagens e as consequências dos atos por eles tomados, que tanto os afastaram, como agora permitem uma insuspeita reaproximação. Almodóvar, portanto, pode ter mudado de cenário, mas continua em sua investigação muito particular pela alma humana – controversa, eufórica, inquieta, mas nunca irrelevante.
Jake (Ethan Hawke, o mais embrutecido e, por isso mesmo, propositalmente desconfortável com a situação que o roteiro lhe reserva) é o delegado de Bitter Creek (Rancho Amargo, em tradução direta para o português), um vilarejo no meio do nada e esquecido por todos. Não há muito o que fazer por ali, mas, quando algo acontece, é sobre os ombros dele que se depositam as expectativas daqueles ao seu redor. Ele é, portanto, aquele que ficou, o que permaneceu e criou raízes. O passar dos anos pode ter lhe roubado uma vivacidade que outrora dominava suas reações, mas ao mesmo tempo lhe proporcionou um olhar agudo em direção das responsabilidades que seu cargo exige e com as quais com prazer lida de forma cotidiana. É também por isso que, mesmo quando algo parece fugir do seu controle, a reação será objetiva, fria e distante. A vida lhe ensinou a ser assim. O calor que uma vez chegou a se agitar dentro do seu peito há muito está esmaecido, e as urgências que agora ocupam seu horizonte podem até se mostrar turvas diante de um acontecimento inesperado ou uma visita de última hora, mas não a ponto de serem esquecidas.
Silva (Pedro Pascal, fazendo de sua presença um misto da figura maleável que tem elaborado ao longo de sua carreira com a persona dinâmica e misteriosa que tão bem desfruta em sua vida privada) há muito por ali não aparecia, mas aquele não é um cenário por ele desconhecido. Motivos não lhe faltavam para um retorno anterior, mas foi também justamente essas as razões que o mantiveram afastado por tanto tempo. Não que esse entendimento tenha lhe chegado facilmente, assim como a mesma compreensão aos outros também pareça faltar. Foi preciso algo forte, além do seu querer, para se colocar numa estrada que tantos anos antes o levou para longe daquilo que mais queria, dessa vez percorrendo o caminho inverso, numa busca tanto pelo hoje como pelo ontem que parece estar perdido, mas ao alcance de um novo vislumbre proporcionado somente pelo encontro de dois, e não no desejo de apenas um. A razão o trouxe de volta, o coração lhe mandará mais uma vez embora, mas será uma combinação destes sentimentos que permitirá chegar a uma posição intermediária.
Almodóvar, também autor do roteiro (como tem sido ao longo de toda a sua carreira), entende que as ligações entre Jake e Silva vão além o episódio que mais uma vez os colocou lado a lado. Tanto é que, mesmo tendo se passado décadas entre um encontro e outro, a retomada se dá a partir do mesmo ponto onde tudo foi deixado em suspenso. Estes são homens que usam botas de couro e se escondem por detrás de chapéus imponentes, carregando na cintura coldres sempre prontos para o próximo tiro, mas poderiam estar em qualquer outro século, em contextos ainda mais ultrapassados ou envolvidos com compromissos contemporâneos, que a dificuldade de expressarem a incomunicabilidade que tanto os aproxima como afasta permaneceria ditando as regras desta improvável – ao menos para eles – relação. O amor que fez deles um só não se dissipou com a distância ou novas obrigações, mas serão elas que, mais uma vez, deverão se impor entre eles. Um pensando no filho, outro na comunidade. Tanto lá quanto cá, ambos à espera de respostas que apenas eles podem dar, devolvendo aquilo que com tanto esforço escondem dentro de si, gesto esse mais simples do que simplesmente encararem a si mesmos um nos olhos do outro.
O maior problema de Estranha Forma de Vida, portanto, é a sensação de coito interrompido – tanto entre os personagens, como também no próprio tecido dramático. Com pouco mais de trinta minutos de duração, esse curta-metragem feito sob encomenda para uma importante marca fashion se dá por satisfeito em mirar apenas o centro do furacão, permitindo apenas uma breve visita em sua origem, mas eximindo-se dos desdobramentos que certamente se farão necessários visto a situação que conjura. A artesania que envolve o desenrolar narrativo é por demais precisa, ocupando-se tanto do desenvolvimento de cada um destes personagens, vítimas de uma maneira de seguir com suas existências bastante singular em um cenário por demais árido – tão literal quanto figurado – como também na construção de cada uma destas interações (o olá surpreso, a retomada da intimidade, a frustração movida por interesses outros, a radicalização de suas posições). O material, como se percebe, era farto. Não merecia, portanto, ser tratado com tamanha leviandade. É, enfim, um Almodóvar menor. Mas, ainda assim, um legítimo.
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