Crítica
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Sinopse
Um vírus perigosíssimo está se espalhando pelo Brasil. Um jovem cineasta negro regressa à sua aldeia para reavivar a relação com seu pai. No entanto, coisas estranhas acontecem à medida que os dois vão se reaproximando.
Crítica
O protagonista de Estranho Caminho é David (Lucas Limeira), cineasta brasileiro radicado em Portugal que está momentaneamente de volta à Fortaleza para apresentar o seu mais novo filme num festival de cinema. Esse tropo narrativo do “regresso à terra de nascença” foi utilizado à exaustão em filmes com abordagens muito distintas. Porém, das comédias românticas mais inofensivas aos dramas mais densos que utilizam esse ponto de partida, geralmente temos personagens que se deparam com um misto de nostalgia e estranhamento ao voltar. Afinal de contas, os amigos que permaneceram são os mesmos, mas não são; os parentes também são ligeiramente diferentes; os cenários familiares adquirem novos significados uma vez enxergados pela ótica do forasteiro; a vida pulsa de modo distinto porque o olhar de quem foi e retornou brevemente é outro. No filme de Guto Parente essa sensação de intimidade estranha é latente, vide a forma como David se desloca por uma cidade que lhe é familiar, mas ao mesmo tempo esquisita, especialmente em virtude do momento histórico marcado por uma pandemia. As perambulações desse jovem acontecem por uma localidade esvaziada pela necessidade do distanciamento social, os encontros com amigos são fugazes e superficiais, o contato humano é limitado à sua extrema necessidade. E David começa a ser emparedado por essa dura situação.
Estranho Caminho é um filme de pesadelo em que a estância onírica está muito próxima da realidade. Chateado pelo cancelamento da exibição de seu filme experimental na cidade que lhe viu nascer, mas insuficiente no seu crescer, David é arrastado por uma série de episódios que demarcam essa sensação limítrofe entre o sonho e o concreto. A pousada em que ele está momentaneamente hospedado é o começo dessa interação fronteiriça. Afinal de contas, por mais baixo orçamento que um evento possa ser, dificilmente o protagonista seria deixado numa pocilga com tamanha insalubridade, destituída de qualquer senso de hospitalidade como aquela. Diante dessa situação curiosa, crescem os questionamentos a respeito daquilo que estamos vendo, se realidade, fantasia ou até mesmo uma dimensão híbrida, Guto pontua essa esquisitice de maneira constante, a reiterando quando David encontra os amigos à beira-mar para uma conversa corriqueira. As ruínas ao fundo dão a sensação de que aqueles sujeitos vestidos e comportados como homens de seu tempo estão deslocados cronologicamente, talvez batendo papo no que restou de uma Grécia antes imponente. Como o realizador não radicaliza essa tensão, provavelmente com receio de chamar demasiadamente a atenção do espectador para a verdade que será contada apenas mais próximo do encerramento, esse clima fica no ar.
Atendendo a algo pertinente a este tropo narrativo do “regresso à terra de nascença”, Guto Parente engatilha uma situação familiar melodramática quando David decide reencontrar o pai, Geraldo (Carlos Francisco). Aliás, os melhores momentos de Estranho Encontro estão justamente na peculiaridade com a qual Geraldo trata o filho depois de tantos anos sem vê-lo. Depois de recebe-lo inicialmente sem muita cerimônia, com protocolares “há quanto tempo”, “o que você está fazendo na cidade”, o pai começa a se comportar de modo arredio diante do pedido do filho para ficar. Ao se focar nesse jogo de gato e rato, especialmente lançando dúvidas a respeito dos escritos diários do sujeito avesso à presença de seu herdeiro, Guto perde um pouco de vista essa tão interessante relação de estranhamento/familiaridade de David com a cidade, o que, por sua vez, também prejudica a construção do limiar entre onírico e real. Questões como a relação de David com a companheira que permaneceu em Portugal se transformam em meros protocolos para variar a trama (sem muita efetividade dramática), uma vez que as chamadas de vídeo entre eles servem cada vez mais apenas para reiterar as situações que vimos anteriormente. O olhar externo dela não acrescenta muito à experiência dele, senão como um lembrete de bom senso e, por conseguinte, da razão sendo desafiada pela intuição.
No filme, há elementos cozinhados em segundo plano, como a hereditariedade, mas que não influenciam de maneira tão direta o desenvolvimento dessa narrativa que cresce ao romper as variáveis da realidade. O filme experimental que David fez poderia ser utilizado como elo entre as divagações e as sensações do protagonista, mas acaba se tornando uma curiosidade encarregada de pontuar certo interesse do pai na carreira do filho. Estranho Caminho é uma produção repleta de possibilidades e caminhos férteis, mas que nem sempre explora bem esse conjunto considerável de potencialidades. Em poucas cenas a relação pai/filho é situada como um dos pontos da reconexão de David com a cidade em que nasceu e foi criado, da qual decidiu partir por motivos nunca citados no longa-metragem. Ou bem David está perambulando pela localidade transformada em ambiente fantasma pela pandemia ou dentro de casa travando diálogos truncados (e repetitivos) com o pai que não deseja a sua presença. O próprio cenário atravessado pela progressão da COVID-19 não é encarado como naturalmente distópico – o que compromete a densidade da natureza onírica subjacente. Os diálogos com o pai ficam um tanto cansativos, as saídas de David cada vez menos envolventes e assim o filme vai sendo refém de uma espécie de deriva. Isso até a mudança de chave que funciona como um bom desfibrilador.
Filme visto no 33º Cine Ceará, em novembro de 2023.
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