Crítica
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Sinopse
Uma jornada por uma das mentes mais prodigiosas da História, a do pintor, cientista e inventor Leonardo da Vinci.
Crítica
Há inúmeras maneiras de fazer cinebiografias. A mais comum delas é a que tenta cobrir um período vasto da vida do protagonista, indo às vezes do nascimento até a sua morte. E isso serve tanto às ficções quanto aos documentários. A quantidade incalculável de longas-metragens com esse recorte conservador impõe vários desafios a quem deseja fazer perfis cinematográficos de pessoas historicamente proeminentes. E o principal deles é uma tentativa de capturar as essências do homenageado ao fugir dos lugares-comuns que podem criar uma enorme sensação de “mais do mesmo”. Eu, Leonardo lança luz sobre a vida e a obra de um gênio, o italiano Leonardo da Vinci – além de pintor e escultor, cientista precursor da aviação e da balística. Portanto, o cineasta Jesus Garces Lambert está diante de uma vida que pode ser capturada a partir de múltiplos vieses. Todos bastante férteis. Ele poderia optar pelo Leonardo artista, pelo estudioso obsessivo, pelo sujeito que cresceu como um filho bastardo, pelo homem acusado de sodomia, etc. Os focos são mesmo vários. No entanto, o realizador preferiu uma abordagem relativamente tradicional, um pot-pourri com os momentos que lhe pareceram mais relevantes dessa trajetória fascinante. Sua ideia parece ser se colocar fora da curva por meio da linguagem utilizada: a do hibridismo em que relatos são dramatizados. Porém, isso não dá certo.
O ator Luca Argentero vive Leonardo sempre com os mesmos figurino, semblante e corte de cabelo. Nada muda. Não há variações na composição que serve a uma teatralização das passagens esclarecedoras, mas que não têm mais que uma função meramente informativa. Para disfarçar a narração clássica (e quadrada) de um documentário biográfico, Jesus Garces Lambert lança mão de um artifício enganador: o narrador (voz de Francesco Pannofino) se dirige ao próprio Leonardo, dizendo coisas como: “você saiu de casa com tantos anos (...) você se tornou obcecado pelo estudo da anatomia humana (...) você se sentiu rejeitado”. Portanto, o narrador pretensamente estabelece diálogos com o protagonista, em meio aos quais busca revela-lo ao espectador. Oras, como não há qualquer importância nessa ponte entre narrador/protagonista (o papo é unilateral), o recurso se torna bem mais corriqueiro do que pode parecer. Esse narrador que informa Leonardo sobre seus sentimentos, condições e afins (?) nada mais é do que uma variação desnecessariamente afetada dos narradores habituais. Aliás, seria menos agressivo à inteligência do espectador se o cineasta assumisse a pretensão de ter um explicador e não buscasse disfarçar isso por meio dessa tentativa fracassada de gerar conversas entre narrador/protagonista. O que nunca se concretiza. E o resultado é bastante convencional.
Do ponto de vista visual, Eu, Leonardo também apresenta escolhas e resoluções questionáveis, sobretudo por conta do estranhamento impregnado involuntariamente nas imagens. Jesus Garces Lambert coloca o ator em situações-chave da existência de Leonardo da Vinci – ao elaborar o famoso Homem Vitruviano, ao pintar a Monalisa, ao ser informado da sentença ao cárcere, entre muitos outros. No entanto, a representação desses instantes, que aconteceram em locais e situações completamente distintas, é praticamente igual. Sem muito espaço artístico para elaborar as nuances de Leonardo, Luca Argentero incorre nas mesmas caras e bocas enquanto permanece relativamente estático em cenários híbridos (em parte práticos, noutra gerados a partir de computação gráfica). Além do mais, a relação entre as texturas digitais e tangíveis (físicas) não acontece de modo harmônico, o que gera um ruído visual capaz de roubar negativamente a cena em diversos dos episódios relatados num tom monocórdico. O longa-metragem selecionado para a 8 ½ Festa do Cinema Italiano 2022 é uma colagem burocrática das frações mal encenadas de uma vida evidentemente extraordinária. Em meio a tantos problemas, fica difícil até se concentrar na excepcionalidade desse homem que seguramente está entre as mentes mais brilhantes e influentes das quais se tem notícia e trabalhos catalogados.
Então, resta uma dúvida: qual era a real intenção de Jesus Garces Lambert ao mesclar ficção, documentário e aspectos teatrais em Eu, Leonardo? Talvez ele tenha partido da necessidade autoimposta de criar uma narrativa que se distanciasse dos chavões das cinebiografias. Bom, se essa mesmo era a intenção, o cineasta deu com os burros n’água, conforme o jargão. Pois, a narração tem um impacto mais comum do que parece, a carga emocional praticamente inexiste nas dramatizações engessadas e o caráter imaginativo da imagem se torna refém da execução técnica e esteticamente sem criatividade. Do ponto de vista meramente informativo, o filme não nos apresenta nada diferente do que assimilaríamos se estivéssemos diante de um resumo escrito. Pensando por esse lado, a linguagem estritamente cinematográfica é pobre nessa produção que erra o alvo em praticamente todas as direções miradas. Além disso, inserções gráficas, imagens pretensamente idílicas (como a do menino caminhando no campo verdejante contra o sol) e ilustrações de outras naturezas compõem um painel desconjuntado pela ineficiência da conjugação dos elementos. Voltando às atuações, elas conjuram a ligação que o filme tem com o teatro, vide a forma como os atores interagem entre si – com a voz, o semblante e os gestos empostados. É outro acréscimo linguístico que incha ainda mais o percurso errático.
Filme assistido durante a 8½ Festa do Cinema Italiano, em julho de 2022
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