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Sinopse

Olka leva uma vida de dificuldades numa pequena cidade polonesa com a mãe e o irmão deficiente. O pai deixou o país há muitos anos para trabalhar na construção civil na Irlanda, e dificilmente entra em contato. Mesmo assim, ele prometeu à filha que lhe daria dinheiro para comprar um carro. Quando Olka recebe a notícia de que o pai morreu num acidente de trabalho, ela é obrigada a viajar ao país vizinho para cuidar da repatriação do corpo. Enquanto isso, tenta descobrir se ele realmente poupou para o presente. Através dos colegas de trabalho e amigos do pai, descobre um homem que ela mesma jamais conheceu.

Crítica

O anúncio sobre a morte de um ente querido costuma ser acompanhado de um cuidado particular na escolha das palavras, estabelecendo o tom de pesar, o choque dos familiares. Em Eu Não Choro (2020), o aviso sobre a morte do pai polonês, vítima de um acidente de trabalho na Irlanda, possui um caráter diferente. A ligação telefônica tem conexão fraca e as palavras se perdem. A dificuldade desta família polonesa em compreender o inglês prejudica a interpretação de frases mais polidas como “Ele se foi”, “Ele não resistiu”. O interlocutor, vencido pelas tentativas, é obrigado a repetir: “Ele morreu. Morreu. Ele morreu, entenderam?”. Mãe, filha e filho permanecem em silêncio à mesa, dentro da pequena cozinha da residência de classe média-baixa. No dia seguinte, continuam sentados nos exatos lugares onde se encontravam na noite passada. Esta cena importantíssima diz muito sobre a abordagem do diretor Piotr Domalewski a partir de um material propenso ao melodrama. Ele retira o desespero, a catarse, o momento de raiva ou incompreensão. O sujeito morreu, portanto Olka (Zofia Stafiej), a única que compreende inglês, é obrigada a viajar ao país vizinho e cuidar dos procedimentos necessários. O pragmatismo diante da morte dita o tom de um drama seco, próximo do realismo social tipicamente inglês (vide as obras de Ken Loach e Mike Leigh).

Esta descrição poderia sugerir uma obra fria a respeito de pessoas desumanas ou ensimesmadas. Ora, o autor foge à armadilha de transformar o núcleo familiar num grupo de aproveitadores. A preocupação com a saúde psíquica de Olka é evidente: a câmera acompanha cada gesto e expressão da adolescente de 17 anos em suas andanças por hospitais, casas funerárias, departamentos administrativos e no porto onde trabalhava o pai. Entretanto, estes personagens não possuem o luxo de interromper suas vidas cotidianas para se dedicarem ao luto. Eles precisam descobrir um meio de obter o dinheiro necessário ao velório, o enterro e o repatriamento do corpo. A garota ainda tem aulas na escola, além de alimentar o flerte virtual com um rapaz que insiste em receber nudes. A mãe precisa cuidar do filho deficiente, além da casa. Há contas para pagar, papéis a arranjar. A morte costuma representar, nas ficções dramáticas, o instante de ruptura permitindo aos protagonistas reavaliar suas ações no passado e objetivos para o futuro. Em contrapartida, esta heroína ocupa um eterno presente. No país vizinho, tem que encontrar um lugar para dormir. Ela se encontra em constante deslocamento, entrando e saindo de ruas, comércios, cômodos, conversando com estranhos em tom de ameaça ou chantagem. A câmera atenta, porém distanciada, a segue fielmente, como descobrisse os próximos passos de Olka junto do espectador. 

Este é um dos aspectos mais belos da produção polonesa-irlandesa: a ausência de piedade. O cineasta demonstra respeito, além de carinho e empatia por esta galeria de pessoas humildes. Entretanto, nunca convida o espectador a chorar por elas. Pelo contrário, a filha abandonada, a amante do pai (interpretada por Cosmina Stratan), a mãe (Kinga Preis), os antigos empregadores e colegas demonstram um comportamento proativo. Trata-se de indivíduos que já passaram por tantas dificuldades na vida que aprenderam a se virar diante dos empecilhos. Se for preciso chantagear, roubar, mentir, que seja. “As coisas são como são”, afirma Sara. “Ele fez o que pôde”, descreve um diálogo, a respeito do pai ausente. Domalewski atribui a responsabilidade à estrutura social que explora imigrantes em empregos de baixa remuneração, mas evita culpar o caráter destes indivíduos. A direção emociona tanto por aquilo que mostra (a resiliência de uma jovem impulsiva e forte) quanto pelo que prefere ocultar (os choros, respiros, pedidos de ajuda). A cidade possui um caráter pouco acolhedor, sempre nublada, azulada, vazia. Os personagens são deixados por conta própria, a sobreviverem da melhor maneira que puderem. Igrejas, policiais, representantes dos governos e das escolas estão ausentes. Nem o falecido ganha lembranças ternas, imagens expressivas. Ele se restringe, do início ao fim, a um corpo por quem se nutre amor e raiva, ao mesmo tempo. 

Por isso, roteiro e montagem se deliciam com a sucessão absurda de assinatura de papéis, permissões, negociações e valores. Eu Não Choro mergulha o espectador na indústria funerária e na pesada maquinaria do funcionalismo público — os pobres sequer podem morrer em paz. Ironicamente, esta será a viagem em que Olka passará mais tempo ao lado do pai. A solução encontrada na reta final para a aquisição do carro tão sonhado carrega um sarcasmo profundo, e serve muito bem à necessidade de deslocamento, rompendo com a inércia onde se encontra a menina. Seria fácil desculpar o pai e oferecer à filha o tempo de contemplação. Ao sobrecarregá-la com tarefas, o filme ilustra pelas tangentes a opressão social, a desigualdade de classes, o peso suplementar depositado nas costas das classes operárias. Faz-se política sem gritar as mazelas do mundo: basta ver o pequeno cortiço para onde Sara se muda, as barganhas com agentes funerários. O projeto nunca funcionaria tão bem sem uma atriz capaz de sustentar a presença da câmera em seu rosto durante a quase integralidade das cenas. A novata Zofia Stafiej desempenha um trabalho excepcional, combinando tristeza, raiva e senso de rebeldia contra o pai que ousou abandoná-la antes de cumprir a promessa de lhe dar um carro. A atriz expressa pequenos sorrisos e minúsculas tristezas, com a preciosidade de quem possui muito talento a apresentar, além de ter sido bem dirigida. São óbvios os sentimentos represados neste corpo tenso e bruto, prestes a explodir.

O drama se encerra numa construção elegante, porém longe de qualquer exibicionismo autoral que chame a atenção ao diretor. Há uma notável preocupação humanista no que diz respeito ao teor estético e o controle das imagens. O dispositivo existe para Olka, porém sem intervir em excesso nem embelezar a jornada — esqueça os planos de detalhe de olhos e mãos, ou os ângulos mais favoráveis a cada interação. A bela direção de fotografia cuida para que as cenas sejam bem iluminadas, ainda que dentro de um modelo naturalista — estamos falando de pequenas funerárias onde a porta não fecha direito, um salão de cabeleireiro popular, uma casa de cômodos estreitos. Ao invés de ser frio, o longa-metragem se torna triste; mas não porque um homem querido morreu (poucas pessoas pareciam amá-lo profundamente, ou sequer conhecê-lo em detalhes). É triste perceber como o falecimento se transforma numa carga suplementar na vida de pessoas com tantos problemas a lidar todos os dias. Esta sensação decorre da trilha sonora discreta, dos movimentos de câmera invisíveis (condicionados aos passos dos personagens), das passagens de tempo em impecáveis elipses da montagem. O refinamento se faz ainda mais admirável porque discreto, integrado organicamente à jornada de uma garota em busca do pai morto — quando, enfim, poderá conhecê-lo.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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