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Sinopse

Um cineasta está produzindo um documentário sobre transtornos de personalidade borderline. Para isso, acompanha três pessoas que apresentam alguma crise e/ou instabilidade emocional, com dificuldades em manter relações interpessoais, seja por terem sofrido algum tipo de trauma ou não.

Crítica

O início desta ficção propõe o que parece ser um estudo sobre casais em crise, especialmente pares jovens e de classe-média. Existe um desgaste evidente na relação entre Isabelle (Juliana Schalch) e o namorado professor, ou ainda entre a policial Marta (Carolina Monte Rosa) e o companheiro pintor. As duas parecem instáveis, descritas como figuras intempestivas e talvez violentas. Até a entrada na trama de um homem com semelhante padrão de comportamento, este poderia ser lido como o retrato à antiga da histeria feminina, ou destas mulheres que se convencionou dizer que “amam demais”, para o desespero dos namorados ponderados e compreensivos.

No entanto, Eu Sinto Muito não demora a fornecer o diagnóstico desses personagens: trata-se de indivíduos com transtorno de personalidade limítrofe, ou borderline. Cada um dos três casais possui uma vítima do transtorno junto de um(a) companheiro(a) tolerante, mas que sofre com as alterações de humor e a tendência a machucar a si próprio e aos outros. Ainda que pretenda se estabelecer como um mosaico amplo de pessoas nestas condições, o filme se atém à mesma classe social, a pessoas brancas e jovens, o que impede a percepção do borderline em esferas distintas. Além disso, a exemplaridade reduz os personagens às suas doenças: Guilherme (Victor Abrão) não constitui um artista que, entre outras características, possui o transtorno, ele se torna prioritariamente um caso borderline, para quem as outras esferas da vida (profissionais e afetivas, em especial) servem apenas para ilustrar as consequências nocivas da psicopatologia.

O diretor Cristiano Vieira efetua escolhas estéticas curiosas. Por um lado, ressalta como o anonimato e as pressões típicas da cidade grande (Brasília, no caso) afetam a psique de uma pessoa fragilizada. Neste momento, utiliza imagens naturalistas, paisagens de avenidas e metrôs. Em outros momentos, trabalha com cenas multicoloridas dentro de casa, com focos de luz duros sobre o rosto dos personagens, em tendência um tanto teatral, de construção artificial. A forte maquiagem no rosto de Isabelle, em oposição à caracterização despojada do namorado, desperta dúvidas sobre esta mistura entre retratar os protagonistas como pessoas comuns ou como casos excepcionais. O roteiro também envereda por caminhos pouco verossímeis, a exemplo da recepcionista da clínica sugerindo a um paciente que passe para trás do balcão verificar informações sozinho (e também coletar dados sigilosos de pacientes) e do artista borderline que atira contra policiais sem sofrer punições por isso.

Felizmente, Eu Sinto Muito conta com ótimos atores. Juliana Schalch, que já havia demonstrado desenvoltura na série O Negócio, trata sua personagem com respeito, buscando nuances entre os extremos de humor a que poderia ficar confinada. Rocco Pitanga também navega bem pela ambiguidade de um pesquisador antiético. Se não fosse por eles, as cenas extremas de brigas com celulares quebrados, armas empunhadas e pensamentos suicidas, ao som de violinos, seriam ainda mais exageradas. Rumo ao final, o filme libera toda a carga emocional que se mantinha relativamente represada numa catarse beirando a histeria, marcada por símbolos óbvios (a tatuagem “Ainda estou viva”, a trilha sonora sugerindo que “Eu já nem sei o que me satisfaz”). Como se já não tivesse sido claro o bastante até então, o final trata de explicitar os riscos e os danos, enquanto verbaliza através dos diálogos as intenções do filme (“Eu não quero ser mostrada como vítima”). Nos últimos minutos, letreiros informativos apresentam números sobre o transtorno borderline, sugerindo que se trata de uma condição mais frequente e mais grave do que imaginamos.

Talvez esta seja a maior deficiência do bem-intencionado projeto: reduzir seus personagens a estudos de caso, retirando deles a individualidade em nome de um grito de alerta panfletário. Não é de se estranhar que o documentário fictício, elaborado pelo personagem de Rocco Pitanga, adquira caráter de autoajuda, e que o roteiro se torne condescendente com as atitudes do mesmo – afinal, vale tudo para uma mensagem maior, inclusive ferir a subjetividade destas pessoas. As próprias deficiências estéticas, sobretudo de maquiagem e fotografia (vide a sombra da câmera projetada nas paredes conforme os personagens entram num camarim), soam como elementos minimizados perto da intenção de jogar luz a um tema considerado importante. Falta considerar que qualquer discussão temática se torna muito mais potente quando fornece elementos de reflexão ao invés de um ensinamento simplificado para a compreensão do público leigo.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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