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Sinopse

Um série de assassinatos em Joanesburgo, na África do Sul, parece estar relacionado a um episódio de tráfico de meninas descoberto no país muitos anos atrás. Em busca de respostas, uma investigadora terá que abandonar todas as suas convicções atrás da verdade.  

Crítica

O cinema sul-africano não é dos mais conhecidos no Brasil. Aliás, se a dieta cinematográfica dos cinéfilos e curiosos nacionais se restringia até pouco tempo atrás a apenas produções norte-americanas e uma ou outra coisa da Europa ocidental, com raras exceções da Argentina ou asiáticas, as plataformas de streaming tem se encarregado de alterar esse cenário: com tudo de bom e de ruim como consequência. Afinal, se a cada semana novos títulos vindos da Nigéria, Índia, Finlândia, Colômbia, e até mesmo da África do Sul, como dito acima, estão sendo lançados na Netflix, ao mesmo tempo acabam passando por um processo de descaracterização que elimina suas cores locais, tornando-os, na falta de uma expressão melhor, “universais”. É o que se verifica em Eu Sou Todas as Garotas, thriller que, apesar de partir de um terrível episódio verídico, se desenrola de forma tão genérica que é quase impossível não lastimar o potencial desperdiçado pelo conjunto.

No longa escrito e dirigido por Donovan Marsh, no prólogo o espectador é apresentado a um trágico incidente que passou um tanto desapercebido pelos noticiários internacionais. Ainda na época do Apartheid, foi desvendado um caso de tráfico de garotas, que partiam da África do Sul rumo a nações do Oriente Médio – e o pior, com o consentimento de altos figurões de ambos os governos, que estavam envolvidos nesse escândalo. No entanto, para diminuir os estragos às imagens públicas, apenas quem estava na ponta da lança – ou seja, o responsável pela captura das meninas e a entrega das mesmas, assim como sua namorada, que o ajudava nesse processo – é que acabaram presos. O acusado, em depoimento oficial, chegou a dar os nomes dos demais participantes da operação, mas o que se sabe é que tais registros e gravações ficaram a cargo das autoridades, que nunca as divulgaram. E assim, mais ninguém foi preso.

A trama começa com o despacho de seis dessas crianças, sendo que uma delas acaba sendo devolvida, sob a desculpa de que “já havia sido usada” – isto é, não era mais virgem. Aos poucos, através de uma série de flashbacks que abusam das explicações, muitas delas redundantes, descobre-se que essa não apenas cresceu, como conseguiu fugir daquele ambiente pernicioso no qual foi (mal) criada. Porém, algo nela permaneceu: o desejo de vingança. É o que a motivou em todos os seus passos até o momento em que a encontramos agora: já como oficial de polícia, técnica em perícia, encarregada de recolher pistas e impressões que possam ajudar os detetives a solucionar os crimes. Marsh, no entanto, não faz dela sua protagonista, optando por centrar suas atenções na policial Jodie Snyman (Erica Wessels, de Meu Nome é Liberdade, 2015). Afinal, é quem primeiro se envolve com um suposto serial killer que estaria matando homens aparentemente de forma aleatória. No entanto, algo em comum existia entre eles: o fato de, anos atrás, terem se livrado – em acordos nos bastidores dos tribunais – de diversas suspeitas de pedofilia.

Se o fato de não haver muito mistério a respeito da identidade do assassino(a) e de suas reais motivações torna tudo bastante previsível, enfraquecendo o projeto até em suas intenções mais básicas, como entretenimento e diversão, Eu Sou Todas as Meninas se torna ainda mais problemático quando se apropria de um fato que fala diretamente sobre a apropriação do homem branco sobre a África negra – as garotas sequestradas, em sua maioria, eram negras – repetindo os mesmos velhos equívocos. Afinal, na condução dessa história está não apenas um cineasta homem – quando as vítimas eram, obviamente, mulheres – mas também caucasiano. Para completar, Jodie – a protagonista, afinal – é a única policial branca que se vê em cena. Ainda assim, é ela a escolhida para levar essa trama adiante. É mais uma vez a branquitude dando a sua própria versão do que teria – ou não – acontecido.

Mas que fique claro: este é um filme frágil sob qualquer ponto de vista que se opte por analisá-lo, e não apenas pela questão ideológica apontada acima. Jodie é uma personagem inconstante – está sempre em atrito com seus superiores, mas quando em ação não chega a demonstrar a competência que alegadamente deveria ter – enquanto que Hlubi Mboya, a melhor amiga e colega de trabalho (e eventual amante), não sustenta o mistério que se esforça em criar ao seu redor, umas vez que suas ações possuem um objetivo bastante claro. Da mesma forma, não há interesse em humanizar os vilões – vistos sempre à distância e da forma mais estereotipada possível – assim como não parecem ser relevantes até mesmo as desaparecidas, não mais do que um número (ou uma foto estampada na tela) para aqueles que deveriam tê-las como suas principais preocupações. Eu Sou Todas as Meninas, como o próprio título afirma, quer ser mais do que tem condições de abraçar, e a frustração pelo resultado é tamanha não só pelo que se propunha, mas também pelos caminhos que opta por percorrer.

 

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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