Crítica
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Sinopse
Após saber que está grávida, Letícia precisa descobrir quem é o pai da criança entre quatro possibilidades. Mesmo insegura, ela entra em contato com todos os candidatos e cada um reage à sua maneira. Começa uma batalha em busca da verdade sobre a paternidade.
Crítica
Letícia descobre que está grávida, mas não sabe ao certo quem é o pai de seu filho. A parcela conservadora da sociedade tenderá a julgá-la moralmente, coisa que nem de longe aconteceria se ela fosse homem. Uma vez que mantém a gestação de uma nova vida, ela não pode se eximir das responsabilidades futuras, ao passo em que enfrenta a batalha contra a resistência dos candidatos a pai, cujo impulso inicial é pular fora e se desonerar das obrigações. Selecionado à Mostra Aurora da 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes, Eu Também Não Gozei tem um título provocativo que visa escancarar as disparidades de gênero discutidas ao longo do filme. A diretora Ana Carolina Marinho enfatiza constantemente a solidão dessa mulher, da gestação atravessada pelas divergências com os ex-companheiros que se esquivam do assunto à criação do pequeno Pedro. Aliás, a estrutura narrativa é marcada por avanços e retrocessos no tempo, o que permite a comunicação imediata entre uma cena pré-parto com outra em que a criança nasceu e está sorridente encarando a câmera. O tema é superimportante, seus desdobramentos igualmente partes de um debate que precisa acontecer para certos estigmas sumirem, mas o filme deixa a desejar no que diz respeito à linguagem, pela forma como é costurado um tanto displicentemente. Há cenas pouco vitais preenchendo as lacunas dessa discussão interessante.
Ana Carolina Marinho opta por um registro cru, talvez com a intenção de não soar artificial e, por conseguinte, expressar algo como uma “verdade sem filtros”. A câmera geralmente na mão, o despojamento na construção das imagens e mesmo a simplicidade do som parecem atender a essa sugestão de pouca intromissão, como se o dispositivo estivesse ali apenas capturando fatias sintomáticas da vida da mulher asfixiada por engrenagens de um sistema machista. São vários os instantes em que a câmera registra parcialmente as personagens enquanto elas reiteram falas anteriores, como na cena em que Letícia e a mãe entram pelo subsolo num shopping center e as vemos apenas da cintura para baixo, enquanto conversam sobre os problemas em questão. Como esses, há outros indícios dessa intenção naturalista que deságua na displicência. O filme ganha muitos pontos quando há um insuspeito rigor formal a serviço da reflexão, como quando a protagonista dialoga com um dos possíveis pais, indo aos prantos diante da insensibilidade de quem pode ser o genitor de seu filho. Nesse momento, Letícia é destituída por seu interlocutor da capacidade de ser razoável e racional, desmoronando aos poucos diante da negativa alheia, transbordando em lágrimas pela vulnerabilidade, diante de uma câmera impassível que respeita a sua dor. No entanto, são poucos os instantes fortes como esse. Em geral, o filme é dispersivo.
Os homens são mantidos quase sempre no extracampo, ou seja, fora de tela em Eu Também Não Gozei – exceção feita ao menino Pedro, claro. Contada por uma equipe feminina, a história de uma mulher em guerra contra companheiros de ocasião incapazes de assumir responsabilidades não prevê muitas ressalvas à escrotidão masculina. Nesse sentido, o ponto fora da curva é um dos candidatos a pai, sintomaticamente aquele que tem um comportamento menos reprovável, chegando a desenvolver um vínculo afetivo com Pedro e declarando seu amor por Letícia. Porém, mesmo diferente dos demais, esse sujeito não ganha a oportunidade de aparecer, sendo pura e simplesmente uma nota dissonante. Ana Carolina Marinho parece não saber direito se faz da busca pela paternidade uma jornada angustiante e solitária, se sublinha a rede de apoio feminina ou se processa em termos subversivos os clichês da maternidade. Letícia confessa as dores de ser mãe, o sentimento de isolamento pós-parto e o esgotamento oriundo da missão de permitir ao filho ter uma história com nomes e indícios biológicos. E enquanto se atém aos indícios de uma maternidade sem romantismos, ela meio que deixa de lado a investigação da paternidade, voltando a ela no último terço do documentário. Nem o ótimo trabalho da veterana Cristina Amaral na montagem ameniza a sensação de falta de dinamismo em várias passagens do filme.
Há trechos que contribuem pouco ao tema principal de Eu Também Não Gozei. Por exemplo, a certa altura a realizadora pergunta a Letícia qual a importância que o pai tem em sua vida. E ela não avança depois da resposta: “muito importante”. Qual a intenção da pergunta? Trazer uma dúvida genuína sobre a relevância da figura paterna? Revelar que a protagonista está em busca do pai de seu filho porque valoriza esse referencial? O documentário pouco se aprofunda nisso, buscando registrar de maneira sóbria e pouco chamativa a Odisseia de Letícia, numa tentativa de registro íntimo que nega qualquer afetação. O roteiro assinado por Amanda Bortolo, Ana Carolina Marinho, Anna Zêpa, Letícia Bassit e Luz Bárbara é uma colcha de retalhos costurados de modo frouxo. E isso fica claro em sequências como a da visita da protagonista às advogadas que podem dar início à batalha judicial em prol da verdade vindo à tona. A situação existe, estritamente, em função da manifestação da jurista sobre leis: “criadas por homens a fim de beneficiar eles próprios”. A fala é contundente, mas a mise en scène – cujo princípio norteador é um campo/contracampo burocrático – não contribui à valorização daquilo que é dito. Enfim, trata-se de um filme de conteúdo forte, mas que cinematograficamente não atinge esse patamar.
Filme visto na 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2024.
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