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Sinopse

Em Eu Vi o Brilho da TV, o adolescente Owen só está tentando aguentar a vida no subúrbio quando sua colega de classe o apresenta a uma misteriosa série transmitida de madrugada. Ela apresenta uma visão de um mundo subterrâneo sobrenatural. Exibido no Festival de Berlim 2024.

Crítica

Owen (Justice Smith) é um pré-adolescente tímido que encontra algum tipo de conforto num estranhíssimo seriado de TV exibido semanalmente no Canal Juvenil, sempre às 22h30. Transgredir é a primeira coisa que esse garoto precisa a fim de ser inserido no universo novo. Para ver os episódios, ele mente aos pais sobre dormir na casa de um amigo, quando na verdade vai conferir o programa na companhia da não menos introspectiva Maddy (Brigette Lundy-Paine). De certa maneira, temos ali uma história de amadurecimento. E ela é marcada por determinadas liberdades relativas à autoridade dos pais. No entanto, a diretora Jane Schoenbrun não opta pelo caminho mais comum da exposição dos questionamentos e dilemas juvenis como forma de escancarar a dificuldade de crescer e se emancipar. A isso ela prefere criar uma narrativa escorregadia na qual nunca sabemos concretamente se estamos na realidade ou na versão distorcida pelas expectativas do rapaz com sérias dificuldades de interação social. Os pais de Owen são vistos de modos bastante distintos: o homem como uma sombra autoritária; a mãe como mediadora entre a quase adolescência do filho e a dureza do marido. No entanto, essas figuras não são psicológica e emocionalmente desenvolvidas. Ambos são borrões na percepção confusa de um menino que exibe pouco entusiasmo diante do mundo em Eu Vi o Brilho da TV.

O longa-metragem tem uma primeira parte instigante, especialmente por conta desse retrato de uma juventude assombrada que contrasta com as imagens solares frequentemente disseminadas do ambiente escolar norte-americano. No que diz respeito ao tom, Eu Vi o Brilho da TV se aproxima de Donnie Darko (2001), embora sem a mesma capacidade simbólica e com uma atmosfera bem menos angustiante. De toda forma, vemos Owen e Maddy cada vez mais capturado pela essência obscura do programa bizarro sobre duas garotas corajosas que lutam contra o Sr. Melancolia – o monstro com cara de lua que tem capangas não menos bizarros. Jane Schoenbrun faz alusão a diversos programas de TV que se tornaram populares nos anos 1990, como Buffy: A Caça-Vampiros (1997-2003), mas se sai ainda melhor ao desenhar a atração televisiva como uma mistura aparentemente aleatória de aventura infantojuvenil e toques aterrorizantes. Quem foi adolescente nos anos 1990 poderá se lembrar desse tipo de atração que à época parecia inofensiva, mas que vista atualmente mostra mais elementos estranhos do que se conseguia distinguir num primeiro momento. As aventuras das protagonistas do programa Rosa Opaco são ao mesmo tempo uma metáfora da trajetória dos protagonistas e um modo de tornar presente na vida deles a noção de ficção como um meio de escapar da realidade.

Jane Schoenbrun demonstra em certos pontos de Eu Vi o Brilho da TV que foi, de alguma forma, influenciada pelo cinema de David Lynch. Isso a julgar pela estranheza meio satírica das criaturas do programa Rosa Opaco, por uma indefinição angustiante entre a realidade e o sonho e, mais diretamente, pela cena em que a banda ajuda a construir uma atmosfera onírica e aterrorizante durante a apresentação num palco sombrio – como Lynch fez na terceira temporada de Twin Peaks (1990-2017). Porém, ela não vai muito mais longe depois de fazer as suas homenagens visuais a um dos cineastas mais provocadores dos Estados Unidos. Aliás, após armar o cenário, inserindo seu protagonista masculino como um garoto enfrentando obstáculos emocionais, a cineasta perde um pouco a mão. Isso porque não trabalha tão bem quanto poderia o mistério envolvendo o desaparecimento de Maddy em circunstâncias inexplicáveis e o curso da vida de Owen – deixando de ser um menino assustado refugiado numa fábula grotesca que o espelha em algum sentido e se tornando um adulto solitário. Em determinado momento da trama, ela vai propor o imponderável como resposta, sugerindo uma confusão ainda maior entre o que enxergamos como realidade e aquilo construído como ficção. Mas, sem instigar a nossa experiência com interrogações suficientemente provocativas ou ainda criar enigmas insolúveis.

Eu Vi o Brilho da TV tem estilo e captura habilmente a nossa atenção em torno do protagonista envolvido por uma fantasia estranha. Porém, ele falha ao concluir a pequena saga sombria. Jane Schoenbrun se perde ao (con)fundir real e fantasia, principalmente porque parece segura demais a respeito do efeito da dúvida plantada na plateia. Assim como Owen, ela nos convida à compreensão, a uma tentativa de decodificar a natureza de tudo, a ligar os pontos e chegar a conclusões. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, o roteiro de sua autoria blinda o enredo de uma resolução incontestável. Em vez de nos arremessar cada vez mais no centro de um redemoinho do qual é improvável escapar, a realizadora vai descendo uma escadinha que pode nos resgatar do perigo da falta de respostas, mesmo que no fim das contas evite um clímax explicativo. Portanto, a primeira parte é competente ao nos convidar à desorientação, a esse ato de enxergar o mundo pelo prisma de um menino introspectivo que facilmente cede à fantasia, confiando nas orientações da única amiga e se deixando levar por uma bizarra história infantil sobre a luta do bem contra o mal. Já na segunda parte, aquela em que Jane poderia dobrar a aposta na vertigem ocasionada pelo curto-circuito entre a verdade e a invenção, ela hesita demais entre oferecer respostas plausíveis e continuar brincando de esconde-esconde. O saldo é que as virtudes do filme se esgotam aos poucos e logo cedem espaço a uma obscuridade nunca levada ao extremo.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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