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Crítica


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Sinopse

Perpera viveu na floresta sem contato com os brancos até os 20 anos de idade. Era um homem poderoso, do povo Paiter Suruí, até conhecer o homem branco, em 1969. Após ser acusado por um pastor evangélico de ter parte com o Diabo, é constrangido a se tornar um porteiro da igreja Evangélica, renunciando aos seus poderes de pajé. No entanto, essa missão comandada pelo pastor intolerante é posta em xeque quando alguém da aldeia vê a morte de perto e a sensibilidade do índio em relação aos espíritos da floresta mostra-se indispensável.

Crítica

Boa parte da proposta narrativa de Ex-Pajé se ancora na tensão entre presente e passado, sobretudo no que tange ao etnicídio sofrido sistematicamente pelos índios brasileiros. Isso se deflagra quando justapostas a frase que abre este longa-metragem do cineasta Luiz Bolognesi, denúncia verbal do extermínio de uma cultura, e a elipse que nos joga do fim dos anos 60, tempo explicitado por meio de filmagens das tribos já dando sinais da assimilação dos costumes do homem branco, aos dias de hoje. O agora é significado por esse procedimento cinematográfico/humanista. Logo, o definhar da tradição é uma visão aterradora. Não há intervenção externa, depoimentos ou algo que os valha, enquanto ferramentas de construção retórica. Esta ocorre, exclusivamente, por noções obtidas no simbolismo dos planos. Assim, não é preciso uma extensa explanação para que entendamos a brutalidade vigente na tribo dos Paiter Suruí. Basta mostrar o índio devidamente evangelizado.

Embora seja o dado sobressalente da dominação ao qual esse povo amazônico foi submetido ao longo das décadas, a conversão de nativos em crentes (no Deus dos brancos) não possui contornos de mera condutora. Na verdade, ela é o núcleo do torvelinho de sintomas apresentados pelo realizador que observa, consternado, uma realidade tétrica. Principalmente na primeira metade do documentário, há uma sucessão impressionante de constatações que se encarregam de edificar o discurso mais contundente de Ex-Pajé. As imagens falam, diversas vezes, por si, como quando se vê o adulto produzindo tinta artesanalmente no primeiro plano e uma criança, bem atrás, completamente distraída pelo celular. De tão emblemático, o simples vislumbre da cena prescinde do comentário subsequente do trabalhador de ocasião quanto à perda ocorrendo ali, com o jovem deixando de aprender para entreter-se pura e banalmente. Todavia, ainda bem, Bolognesi utiliza a fala do índio para acentuar a melancolia do instante.

Ex-Pajé é visualmente bonito. A composição é delineada pela alternância entre planos plasticamente elaborados, que dão conta da natureza soberana, e flagrantes marcados pela coloquialidade. Perpera, o ex-líder espiritual que se tornou evangélico para evitar os olhares censórios dos religiosos da região, é um protagonista incomum, no sentido de não necessariamente guiar a trama, mas de oferecer sua vivência como polo magnético às demais barbaridades denunciadas. Chega a ser revoltante ver a subserviência desse homem proeminente na região diante dos ditames do pastor que taxa os espíritos de sua ancestralidade como obras do demônio. Essa sanha catequista remonta ao processo similar levado a cabo séculos atrás pelos jesuítas e outros pregadores cristãos que por cá estiveram vilipendiando as crenças alheias. A operação, aliás, é uma das que acessa virtualmente um caldo histórico, o etnocídio regular que aqui permanece no centro das intenções.

De certo ponto em diante, Ex-Pajé passa a se deter na vigília local a uma acamada nativa, cuja convalescença ocorre em virtude da picadura de cobra que a põe entre a vida e a morte. Em estado grave, pois vitimada por uma jararaca, ela motiva o retorno de Perpera à pajelança, com direito a conselhos às novas gerações sobre a importância de jejuar e invocar espíritos para afastar os inimigos. Há uma perda de pujança nessa subtrama urdida para complementar a celebração dos costumes que parecem fadados ao esquecimento, porém nada que deponha seriamente contra o conjunto. Valendo-se da expressão alheia, o cineasta expõe a subjugação de uma gente, sua adequação forçosa aos novos tempos, com isso demonstrando uma mirada perplexa, de quem pouco pode fazer, a não ser apresentar. A tecnologia não é antagonista, também serve para incriminar madeireiros ilegais na internet e ajudar a perpetuar bens imateriais, como os cânticos, por exemplo. Vilões são aqueles que se acham no direito de encabrestar outrem, dizimando gradualmente as suas raízes e essência.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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