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Sinopse

O que é o faquirismo e como ele se tornou popular no Brasil, em toda a América Latina e na França? Originado do circo, consiste no domínio do corpo, resistência a dor, controle respiratório, redução de batimentos cardíacos, entre outras técnicas.

Crítica

É instigante o resgate que Helena Ignez faz do faquirismo no Brasil, sobretudo ao mirar os anos 1950. E o fascínio por esses espetáculos públicos de abstinência é evocado pela narrativa da imprensa sensacionalista. Um dos principais nome do chamado Cinema Marginal, a veterana realizadora utiliza as manchetes de jornais (como fizera Rogério Sganzerla em O Bandido da Luz Vermelha, 1968) para contar as histórias de homens e mulheres, mas também a fim de deflagrar o respaldo popular desse tipo de arte. O primeiro bloco de Fakir é dedicado quase que exclusivamente ao retrato da prática que requer grande capacidade de concentração física e mental, o que permite aos profissionais permanecerem dias a fio em condições insuportáveis para pessoas comuns (extremas fome e inércia). Ela chega a ensaiar um comentário especificamente acerca da fome, uma vez que a privação violenta de alimentos é uma das principais vedetes dessas atrações bastante prestigiadas. Mas, para além de um par de relações com a escassez imposta pela pobreza, isso acaba não evoluindo.

Helena acentua o caráter espetacular do faquirismo. Para isso, comenta as proezas das pessoas que se apresentavam em público e angariavam notoriedade em eventos carregados de uma aura grotesca. Afinal de contas, que tipo de interesse mórbido dava conta de mobilizar as multidões em torno dos esquifes de vidros em que faquires e faquirezas permaneciam encerrados, sob camas de pregos afiados e na companhia de serpentes? A cineasta não chega a fazer diretamente essa pergunta, mas deixa um terreno suficiente nas entrelinhas para que a formulemos individualmente. Helena tampouco busca investigar profundamente as raízes desse conjunto de técnicas milenares, mencionando esporadicamente, por exemplo, uma gama de estudos balizando a conduta de alguns sujeitos que se tornaram célebres por suas resiliências física e (pretensamente) espiritual. No que tange à celebração da encenação como notável ato artístico, ela promove algumas montagens de números claramente estilizados como artifícios, em meio a esse processo deixando à mostra a feitura do próprio filme. Com isso, fortalece uma sólida, sutil e insuspeita ponte entre as artes (a Sétima e o faquirismo).

Porém, há uma debilitante falta de foco em Fakir. A despeito da consistência da metade inicial, não somente quanto ao resgate, mas igualmente a respeito das ousadias de linguagem, Helena permite que outros tópicos se intrometam e clamem por protagonismo, deixando assim o filme a mercê de uma ligeira cacofonia. Não fica muito claro se a ela o mais importante é fazer um inventário do faquirismo nos Brasil ou ler as engrenagens sociais que interditam à mulher os lugares de proeminência. Tomando como exemplo algumas pitonisas – dançarinas que se exibem com cobras, geralmente peçonhentas, assim criando um misto de encanto e medo, um dos tipos de faquirismo –, ela começa a derivar por dificuldades que as mesmas tiveram no decurso de suas carreiras. São chocantes as citações das inúmeras violências às quais elas foram submetidas, seja uma multidão se achando no direito de despir em praça pública alguém acusada de afrontar a moral e os bons costumes ou casos privados de agressões às que sabidamente ganhavam a vida desafiando os limites da dita normalidade. Nesse ponto do documentário, até o vislumbre dos bastidores perdem o viço e a relevância.

Ainda sobre essa dispersão que enfraquece Fakir, Helena Ignez envereda pela esfera cinebiográfica ao dedicar um generoso tempo à Dora Vivacqua, conhecida como Luz Del Fuego, fundadora da primeira colônia naturista da América Latina entre os anos 1940 e 1950. Incluída na narrativa por ser pitonisa, além de escritora, dançarina e atriz, ela é pouco contextualizada dentro do universo do faquirismo, logo configurando uma força paralela. Ao olhar para a história dela, Helena sublinha a imposição da trajetória desviada pelo patriarcado, constatação que ecoa em outros casos específicos. A brevíssima menção a duas lutadoras – que no presente interpretam suas versões do passado à câmera da cineasta – surge um tanto deslocada, principalmente por conta da falta de um desdobramento dessa variação de arte, levada a cabo por personagens lidas como precursoras. Em suma, existem dois temas principais disputando os holofotes. Um deles, o magnetismo do extremo como base do espetáculo popular. O outro, não menos interessante, o preço pago pelas corajosas que ousaram ao quebrar a lógica vigente e reclamar o espaço público como um tablado para se expressarem.

Filme visto online no 9º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, em outubro de 2020.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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