Uma História de Família

Crítica

Uma História de Família oferece um paradoxo interessante: o que há de melhor nele não é propriamente o exibido, mas as questões subliminares em torno do exibido. E muito disto apenas acontece pela forma como Herzog dirigiu este falso documentário, o que também resultou em problemas no âmbito estético e de fluidez na narrativa. Ou seja, há neste longa-metragem um contrapeso de forma a privilegiar a mensagem em detrimento da forma, por mais que ambas estejam intrinsecamente ligadas. Confuso? Nem tanto.

A priori, falemos do aspecto conceitual em torno do filme. Com uma história que apresenta uma insólita empresa que aluga pessoas para executarem ou vivenciarem momentos específicos, seja para levar um esporro do chefe ou mesmo como um pai/marido substituto, a opção pelo Japão como palco desta trama é essencial. Pelas características comportamentais de seu povo, tal escolha transfere à história a crença por uma possível viabilidade de tal relacionamento, por mais artificial que seja. Há, no entanto, um incômodo constante em tal possibilidade, como se houvesse um limite moral ali ultrapassado. Herzog, muito habilmente, manipula tal sensação no decorrer de todo o filme.

Dentro da proposta de ser este um falso documentário, o diretor ainda optou pelo uso de câmeras digitais de baixa resolução, o que não só lhe daria maior mobilidade mas, também, aproximaria a imagem à usual do cidadão comum. Além disto, a busca por uma câmera confessional faz com que, em vários momentos, a imagem esteja bem próxima do rosto, com influência direta da luz natural. Tal decisão tem seu custo, que se reflete especialmente na baixa qualidade da fotografia, em especial nas sequências entre pai e filha.

Se por um lado Uma História de Família se resume a apresentar seguidas esquetes onde é possível ver a empresa em pleno funcionamento, algumas delas com continuidade e outras não, é nas entrelinhas de tais relatos que pode-se refletir acerca de tal realidade. Há no filme uma melancolia explícita no olhar de cada cliente, exprimindo implicitamente as carências e crenças tão comuns ao mundo contemporâneo, como a solidão, a devoção às redes sociais ou a ansiedade em viver (ou reviver) experiências marcantes. Sem verbalizar questionamentos éticos ou emocionais em torno de seus personagens, Herzog entrega tal trabalho a cada espectador confrontado com tal situação, ao mesmo tempo tão absurda (pela artificialidade dos relacionamentos) quanto próxima (pela sensação de mundo real).

Quando a sucessão de esquetes começa a cansar pela repetição da mesma fórmula, Herzog altera levemente a narrativa de forma a inserir questionamentos em torno do presidente da empresa, ele próprio tão ativo nas encenações contratadas pelos clientes. Até que ponto viver uma vida falsa, ou várias vidas falsas, afeta sua própria identidade? Existe um limite ético na mentira contratada? O dinheiro realmente pode tudo? Mais uma vez tais perguntas surgem sem respostas, apenas estimuladas pela própria narrativa de forma a promover a reflexão. Este, no fim das contas, é o grande mérito do filme.

Instigante pela implementação de tal proposta, Uma História de Família é também um filme limitado dentro do que se propõe a ser. Identificados os códigos deste xadrez cinematográfico proposto por Herzog, pouco resta além da repetição de uma fórmula que não apresenta tanto fôlego assim, também devido à estrutura de falso documentário. Ainda assim, trata-se de um filme bastante interessante pela forma como seu diretor constrói uma narrativa que, ao mesmo tempo, surpreende e faz refletir, por mais que tenha também um tempo de duração limitado.

Filme visto em Portugal, em março de 2020.

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Francisco Russo

Jornalista e crítico de cinema. Fundador e editor-chefe do AdoroCinema por 19 anos, integrante da Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCRJ (Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro), autor de textos nos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros", "Documentário Brasileiro - 100 Filmes Essenciais", "Animação Brasileira - 100 Filmes Essenciais" e "Curta Brasileiro - 100 Filmes Essenciais". Situado em Lisboa, é editor em Portugal do Papo de Cinema.

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