Crítica
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Sinopse
Os Estados Unidos viviam um intenso clima de polarização política em 2016, divididos previamente entre Donald Trump e de Hillary Clinton, os prováveis candidatos republicano e democrata à presidência dos Estados Unidos. O cartunista Matt Furie viu seu personagem Pepe, O Sapo, criado há 10 anos, se tornar um símbolo da extrema-direita, tuitado por Trump, condenado por Hillary, declarado um símbolo de ódio pela Liga Anti-Difamação.
Crítica
A investigação é levada a cabo com inteligência e destreza em Feels Good Man. Tudo começa com a gênese do personagem Pepe, O Sapo, criado por Matt Furie como parte de um gibi chamado Boy’s Club, inspirado em suas vivências da juventude. Inadvertidamente, esse batráquio verde e carismático, com jeitão de boa "gente", acabou se tornando, por uma série de desdobramentos aparentemente aleatórios, símbolo da extrema-direita e do supremacismo nos Estados Unidos, ao ponto de ser incluído no rol de ícones discriminatórios. O cineasta Arthur Jones faz uma apuração minuciosa e bem fundamentada das etapas consecutivas a essa mutação que diz muito a respeito de traços da nossa contemporaneidade. Porém, no trajeto instigante e cheio de constatações potencialmente aterradoras, ele acaba expandindo o foco, a partir disso fazendo um diagnóstico da sociedade estadunidense, da capacidade nociva dos recantos obscuros da internet quanto à fermentação de ideias e condutas perniciosas e, ainda por cima, observa como todo esse caldo influencia o ambiente político.
Feels Good Man não perde de vista a personalidade dócil de Matt Furie, por meio dela oferecendo um contraponto constante às apropriações indébitas de seu personagem mais famoso e, adiante, controverso. No epicentro do panorama socialmente conturbado por ímpetos preconceituosos e agressivos, está a tragédia do criador que se percebe às raias da impotência diante da voracidade com que a internet permite ressignificações brutais. E o documentário é habilmente ilustrado por animações de Pepe, ou seja, utiliza a sua imensa expressividade em benefício do quebra-cabeças montado com parcimônia e perícia milimétricas. Há uma estrutura em blocos, mas mesmo as transições entre eles acontecem de modo sutil, com os assuntos se encadeando quase como se o contrário fosse impossível. Assim sendo, todo o emaranhado de noções heterogêneas faz sentido, em conjunto, pela qualidade do roteiro, de como ocorrem os encaixes. Até a cultura dos NEET (no Brasil chamados de “nem-nem”, os nem trabalha, nem estuda) entra nesse painel impactante.
Para explicar a adoção de Pepe por supremacistas, o cineasta mira o ambiente do 4chan, fórum em que os usuários publicam sem identificar-se e cuja notoriedade advém justamente da quantidade de interações. Quanto mais polêmico e ofensivo, ou seja, sem qualquer nuance, empatia ou noção de civilidade, melhor será o engajamento. Mesmo sem fazer um extenso estudo antropológico sobre esse fenômeno visto em graus diferentes nos sítios da realidade virtual, Feels Good Man dispõe indícios para que compreendamos a tal lógica como essencial à eleição de um notável ignóbil como Donald Trump à presidência dos Estados Unidos. Os nem-nem são jovens vivendo (parasitando?) sob o teto dos pais, desempregados e sem perspectiva, excluídos reunidos no anonimato para destilar frustrações por meio da apropriação das feições do sapo de lábios grossos e olhar tornado dúbio. O filme perfaz sintética e consistentemente os caminhos que permitiram ao personagem ser desdobrado e retorcido ao bel prazer de extremistas, eufemisticamente chamados de “direita alternativa”.
Feels Good Man destrincha um drama pessoal (o do autor) e ainda identifica, alternando graça e terror, o ódio cultivado em ambientes online, nos quais a exclusão acaba se tornando um combustível altamente inflamável para diversas atrocidades. Arthur Jones aponta à voracidade dos chamados odiadores (os haters), nos dando ferramentas para acessar e entender o potencial mobilizador dos ícones, intercalando entrevistas tradicionais – inclusive com um ocultista, o que atesta uma predisposição por ampliar bastante o escopo –, animações e a vastidão de dados da apuração certamente acurada. A narrativa transita organicamente entre as esferas privada e coletiva, navegando entre os esforços do criador para resgatar a originalidade "de boas" da criatura e uma leitura densa de submundos repletos de ódio e ignorância. Nesse panorama, Donald Trump surge quase como um meme que virou presidente, alavancado por uma enorme onda nutrida de fobias (xenofobia, homofobia, islamofobia) e ismos (racismo, machismo, sexismo). Uma radiografia alarmante do nosso tempo.
Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Marcelo Müller | 9 |
Chico Fireman | 6 |
Lucas Salgado | 8 |
MÉDIA | 7.7 |
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